domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 12


Preparativos


        Depois daquela conversa com Chris, e mesmo que eu tentasse com todas as minhas forças impedir o que acontecera a seguir, foi impossível manter a relação como tínhamos antigamente.
            Felizmente ele não contou a ninguém o que tinha acontecido entre nós e a vida continuou no castelo como tinha sido até aí. Os meus amigos não desconfiariam nem por um minuto que eu estivera prestes a beijar Chris, e pior ainda, que quisera mesmo beijá-lo.
            Essa era a dúvida que eu trazia comigo todos os dias. Acordava a pensar nisso, passava o dia a pensar nisso, adormecia a pensar nisso e acabava mesmo por sonhar com isso.
            Por que é que eu quisera beijar Chris? Por que é que ele me quisera beijar, logo a mim? Porquê?
            Eu não fazia a mínima ideia. Até aí eu tinha-o tratado da mesma maneira que tratava Ryan ou Peter (se bem que Peter era um caso diferente depois do que tinha acontecido entre ele e Kalissa) por isso não entendi imediatamente como é que Chris pudera desenvolver aquilo por mim. Aliás, no princípio, quando todos os rapazes da escola (incluindo os Desportistas) pareciam estar de olho em mim, ele fora o único a mostrar-se razoável, a fazer-me sentir à-vontade junto de si em vez de ter de me resguardar. Talvez fosse aquele seu estranho dom para me entender como mais ninguém conseguia fazer, para quase me ler os pensamentos como se fosse um verdadeiro médium, e para ser capaz de perceber tudo o que eu queria, fosse em que altura fosse. Será que esse entendimento profundo o levava a querer beijar-me? Não fazia sentido. Pelo menos para mim.
            - Kiara? Estás a ouvir alguma coisa do que eu disse?
            Suspirei. Claro que não estava.
            Era terça-feira à tarde. Estávamos na Sala de Convívio, depois do almoço, à espera que se ouvisse o toque do sino para podermos ir para a aula. Eu estava deitada na relva macia da clareira da árvore velha, com Niza deitada à minha direita e Sophie à minha esquerda. Elas tinham estado a falar animadamente durante os últimos quinze minutos mas eu não prestara atenção nem a uma única palavra do que elas tinham dito. Mantinha-me de olhos fechados a imaginar Chris na minha cabeça e a rever, pela milésima vez, o nosso quase-beijo. OK, não é o melhor termo, mas foi o primeiro de que me lembrei, porque era mesmo isso que tinha acontecido: ele quase me tinha beijado. Quase. Mesmo por muito pouco.
            - Kiara! - Chamou Sophie, sentando-se rapidamente.
            Abri os olhos e fitei a minha amiga, que parecia bastante ofendida por eu a continuar a ignorar. Como é que lhe explicava que não me apetecia minimamente falar de vernizes e de tintas para o cabelo?
            - Desculpem… não estava aqui…
            - Pois, isso deu para ver! Onde é que já ias? Em Saturno?
            - Mais longe. - Sorri ironicamente.
            Niza sorriu-me também e tornou a deitar-se para trás. A luz do sol filtrada pelas folhas das copas das árvores dava ao seu cabelo uma tonalidade mais esverdeada que a fazia parecer uma ninfa da floresta.
            - Está tudo bem contigo? - Perguntou Sophie.
            - Sim.
            - Tens andando tão calada ultimamente! Deve ter acontecido alguma coisa que não nos contas.
            - A sério, está tudo bem, não se preocupem. Eu estava apenas… a pensar nos testes que temos para a semana, mais nada.
            - Pois… realmente isso dá umas enormes dores de cabeça. - Niza parecia realmente preocupada com o assunto, não estava a ser nada sarcástica.
            - Mas também vem aí algo mais entusiasmante que os testes. - Disse Sophie, toda contente.
            Olhei para ela, tentando entender o que podia estar a aproximar-se que merecesse o entusiasmo dela (ou melhor, uma nova onda de entusiasmo, porque a felicidade de Sophie era quase inabalável.)
            - O que vai acontecer? - Perguntei.
            - O Halloween! Está quase aí! Como é que pudeste esquecer-te?
            Ah sim, o Halloween… bem, com tanta coisa a acontecer na minha vida ao mesmo tempo era natural que eu não me lembrasse dessa festa. Mas será que se podia comemorar o Halloween ali dentro do colégio? Niza leu a pergunta nos meus olhos e sorriu provocadoramente.
            - Claro que podes. Vai ser o melhor acontecimento do ano. Não tens bem noção, o castelo fica mesmo bem arranjado para a festa. Mas tu tens de comprar o teu fato lá fora. Eu já tenho tudo pensado: no fim-de-semana antes do Halloween vamos ao centro comercial comprar os fatos, está bem?
            - Mas é mesmo obrigatório ir? - Perguntei.
            Eu gosto de festas, para dizer a verdade. Adoro dançar e cantar e rir-me e divertir-me ao máximo, mas… naquele momento não estava com espírito para celebrações. Os meus tios tinham sido mortos há menos de dois meses, tinha uma demónia dentro de mim que se podia soltar a qualquer momento e o meu melhor amigo tinha tentando beijar-me. Como é que eu podia ter cabeça para pensar em Halloween?
            - Claaaaaaaaro que é! - Sophie parecia chocadíssima com o meu ar desinteressado.
            - Não te apetece ir? - Perguntou Niza.
            - Não muito. - Respondi, olhando para o céu. - Mas se é mesmo obrigatório…
            - Quer dizer, não é nenhuma lei ir à festa nem pagas multa por não compareceres mas… toda a gente vai à festa Kiara, dura a noite inteira e não vais conseguir dormir nada mesmo que te enfies no quarto a seguir ao jantar! Vai haver música durante toda a madrugada e risos e partidas…
            - Ah pois, já estou a ver.
            - Vá lá, gostava tanto que viesses connosco! Ias divertir-te imenso. - Sorriu Niza, cheia de esperanças que eu cedesse ao seu pedido.
            Tinha-me começado a aperceber, nas semanas anteriores, que me custava imenso negar um pedido de Niza ou sequer pensar em contrariá-la. Era impossível não ceder aos caprichos daquela miúda por mais pequenos que fossem, só aquele par de olhos cor de esmeralda faziam-me concordar com qualquer opinião sua.
            - Está bem, se fazem tanta questão… - Encolhi os ombros.
            - Óptimo! Vais adorar Kiara, tenho a certeza! - Cantarolou Sophie.
            Pôs-se de pé e começou a rodopiar à nossa frente em leves passos de bailarina. Ela era realmente uma amante de festas.
            - Vai ser fantástico: o castelo vai ficar todo enfeitado com caveiras, abóboras, teias de aranha e esqueletos e tudo o mais, e toda a gente vem mascarada… eu quero vir de Catwoman, o que acham? Até já vi uma loja onde têm o disfarce e tudo. É só ir lá e comprá-lo antes que esgote. E o jantar?! Esse vai ser fantástico! Vai haver vinho e mais vinho e champanhe e todas essas bebidas! Podemos embebedar-nos à vontade! E a música, vai haver tanta música, e eu vou dançar a noite toda! - Ria ela, enquanto dançava aos saltinhos e fazia os planos como se estivesse a sonhar acordada.
            Ri-me da felicidade que parecia emanar em ondas luminosas em redor de Sophie. Senti-me bem por a ver tão entusiasmada.
            - De que é que vens mascarada, Kiara?
            - Ainda nem pensei nisso, nem sabia que ia à festa…
            - Eu venho de bruxa. Mas o fato é o máximo. - Riu-se Niza.
            - É aquele com o véu que eu vi na loja onde fomos da última vez? - Perguntou Sophie, de olhos arregalados.
            - Sim, é esse mesmo.
            - Uau! Escolheste bem! Esse é realmente fixe… e nós vamos arranjar um bom para ti, Kiara, está descansada! - Disse Sophie.
            Pegou-me nas mãos e puxou-me para cima, começando aos saltinhos à minha volta. Se Sophie ficava assim tão entusiasmada com uma simples festa…
            - Vamos avisar os rapazes! De certeza que eles também querem vir à festa! - Disse Niza.
            E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa Niza levantou-se e arrastou-me, juntamente com Sophie, até à porta do balneário masculino. Ryan e Peter estavam a sair, a conversar sobre qualquer coisa de rapazes, e pararam assim que nos viram chegar.
            - Ryan, lembrei-me agora de uma coisa muito importante: a Kiara ainda não tem fato para o Halloween. Ela nem queria vir nem nada mas eu convencia-a.
            Ryan olhou para mim e riu-se.
            - Eu se fosse a ti não contrariava a Sophie. Se não viesses à festa acho que ela te matava.
            Eu sabia que ele estava a falar a sério, mas ainda assim juntei a minha gargalhada à de Peter.
            - Pois, ela lá me convenceu.
            - Então e já tens alguma ideia para o fato?
            - Não…
            - No fim-de-semana antes da festa nós vamos ao centro comercial buscar os nossos fatos. Vens connosco e escolhes um. - Sugeriu Ryan.
            - Pode ser.
            Sophie piscou o olho a Ryan. Quando aqueles dois se uniam com o mesmo objectivo era difícil escapar deles. Niza passou o braço em volta do meu e sorriu.
            - Vai ser fantástico.
            E eu não tive coragem para a contradizer.
           

            E tal como combinado, os dias que faltavam para o Halloween passaram a correr e super atarefados. Havia testes atrás de testes e eu tinha de aproveitar todos os minutos livres para estudar. Cheguei a ficar acordada até bem tarde durante a noite a estudar no quarto, enquanto Sophie e Niza dormiam. Eu não queria descer as notas. Não queria dar a John um motivo para se sentir zangado comigo. Ainda por cima agora as coisas entre nós estavam bem. Eu ia visitá-lo bastantes vezes e ficávamos a falar. Com Kalissa longe, a minha vida estava a compor-se, finalmente.
            Pelo menos… na maioria das vertentes.
            Havia um factor que não melhorava, pelo contrário, só conseguia ficar cada vez pior: Chris.
            Para meu grande desgosto, começou a ser difícil estar sentada no mesmo sofá que ele, ao serão, quando nos juntávamos todos na Sala de Convívio a ver um filme qualquer. Fazia-me impressão o seu braço em volta dos meus ombros e os abraços tão fortes e tão intensos que ele me dava. Não era uma impressão má… porque na verdade o que eu queria era que ele me abraçasse mais ainda, e isso deixava-me de rastos.
            Por que é que eu tinha de começar a sentir isto por ele, logo por ele?
            Depois do que se passara com Peter, eu achei que não me envolveria com ninguém dessa maneira pelo menos nos próximos séculos. E agora sentia-me assim tão… atraída - até me custava usar a expressão - pelo meu melhor amigo, com uma vontade de estar junto dele que ultrapassava a lógica e o bom senso. Eu tinha de parar com aquilo.
            Mas era realmente complicado.
            Em todas as refeições eu sentia os seus olhos cravados nos meus, enquanto ele tentava desesperadamente descobrir o meu segredo através dos meus pensamentos. E eu tornava a erguer a minha parede invisível para o impedir de me espiar os sentimentos. E ele ficava amuado por não conseguir entender o que se passava comigo, e ainda que me desse algum gozo picá-lo daquela maneira, ficava a sentir-me mal comigo mesma logo a seguir e acabava por lhe pedir desculpa. Mas era realmente necessário não o deixar descobrir.
            Depois, à noite, ficávamos na Sala de Convívio a ver televisão, mas eu nunca conseguia concentrar-me nos filmes ou nas séries, com ele sentado tão junto a mim. Ele acabava por me abraçar e me deixar deitar a cabeça no seu ombro e eu não conseguia obrigar-me a afastar-me dele. Queria permanecer ali para sempre, sem conseguir resistir ao perfume dele.
            Felizmente, nem Peter nem Ryan sentiam ciúmes da minha relação com Chris. Até Peter me espantou por estar a aceitar tão bem. Porque na verdade os sinais não era muito evidentes, apenas eu e Chris tomávamos atenção a eles por sabermos o que se estava a passar. E eu esforçava-me ao máximo para que nem Sophie nem Niza desconfiassem do que se andava a passar. Não que tivesse de me esforçar muito: elas andavam tão entusiasmadas com o Halloween que não pensavam em mais nada.
            E os dias iam passando naquela rotina agradável.
            Como planeado, no fim-de-semana antes do Halloween fomos comprar os fatos para a festa. No Sábado, dia 26 de Outubro, fui acordada bem cedo pelo horrível despertador de Niza, que pulava na mesa-de-cabeceira dela. Quando o consegui desligar já não valia a pena tentar voltar a dormir. Levantei-me da cama e fui até à janela, afastando os cortinados para ver o exterior. O céu apresentava uma tonalidade cinzenta nada agradável. Suspirei e fui tomar banho para depois me arranjar. Quando voltei ao quarto, Niza e Sophie já estavam a falar animadamente e a fazer planos para o dia. Vesti-me em silêncio, esperando sinceramente que elas se despachassem. Quanto mais depressa fôssemos, mais depressa voltaríamos.
            - Eu já estou pronta… vou lá para baixo, encontramo-nos no refeitório? - Perguntei, enquanto acabava de apertar os atacadores dos ténis.
            - Claro, vai andando. - Sorriu Niza.
            Saí do quarto, atravessei o corredor e estava prestes a ir para a Sala de Convívio quando me lembrei de ir ver se os rapazes já estavam despachados, uma vez que eles tinham combinado vir connosco. Ia ser uma saída de grupo e eu queria mesmo que corresse bem. Por isso atravessei o corredor dos dormitórios masculinos, procurando o quarto de Ryan, Chris e Peter, e quando o encontrei bati levemente na porta. Foi Chris quem veio abrir.
            - Olá Kia. Entra, estamos quase prontos.
            Quase…
            O meu olhar desceu do seu rosto para o seu pescoço, depois para os seus braços e para o seu tronco nu até chegar aos jeans que ele tinha vestidos, e depois apressei-me a voltar a olhar para os olhos dele, sentindo-me a corar que nem um tomate.
            - Vem. - Pediu ele baixinho.
            Deu-me passagem e eu entrei rapidamente, tentando não pensar que ele me viera abrir a porta de tronco nu. Peter estava a apertar os atacadores dos ténis e Ryan a acabar de se vestir. O quarto deles tinha a mesma disposição que o nosso, mas os tons eram diferentes: tudo o que no nosso quarto era cor-de-rosa ali era azul ou castanho. Mas ainda assim era fixe.
            - Elas já estão prontas? - Perguntou Ryan, olhando para mim.
            - Não. A Sophie ainda se vai pentear e maquilhar, já sabes como é.
            Ryan revirou os olhos. Na opinião dele, Sophie nem precisava de maquilhagem porque era suficientemente bonita para poder andar sem ela.
            - Tu tens alguma ideia sobre como te vais mascarar? - Perguntou Chris.
            Ele estava mesmo parado atrás de mim, os meus cotovelos tocavam no seu abdómen e o seu perfume pairava à minha volta, fazendo-me estremecer. Não devia ser possível aguentar algo assim. Fechei os olhos para me controlar melhor.
            - Não sei ainda, depois logo vejo qualquer coisa.
            - Hum, está bem. Sabes de que é que a Sophie vai? - Perguntou Ryan.
            - Sim. Mas não te vou dizer.
            Contive a gargalhada que queria soltar. Ele ia-se passar quando a visse mas eu queria que ele ficasse na expectativa. Jamais trairia o plano da minha amiga.
            - Oh vá lá, eu não lhe conto que tu me disseste.
            - Nem penses Ryan.
            Peter riu-se.
            - Vais ter de sofrer até quinta-feira. Mas eu tenho cá uma sensação de que vai valer a pena esperar.
            - Ai podes crer que vai. - Ri-me.
            Sentei-me na cama de Chris e ele sentou-se bem perto de mim, com o braço quase a rodear a minha cintura, fazendo-me cerrar as mãos em punhos para me controlar. Ele estava a provocar-me, queria ver se me tirava do sério, mas eu ia ser mais forte que ele.
            - Bem, amanhã não tens treino da Claque pois não? - Perguntou Ryan.
            - Não.
            - Ainda bem! Podes ficar connosco.
            - Sim… acho que não há problema. Mas eu tenho uma dúvida.
            - Qual?
            - Não há aulas na quinta-feira, certo? Por causa do Halloween.
            - Só há aulas de manhã. Depois do almoço os alunos que não sejam do 11º e 12º ano são obrigados a sair do colégio enquanto nós enfeitamos o castelo. - Explicou Peter.
            - Vamos ser nós a fazer isso? - Perguntei, entusiasmada.
            Se calhar não ia ser tão mau como eu estava a pensar.
            - Claro! Mas os enfeites são arranjados pelos professores. Basta-nos enfeitar tudo e… festa! - Riu-se Peter.
            Eu também estava a achar a ideia melhor a cada dia que passava. E eu que achara que não me conseguiria divertir nem ir a festas depois do que tinha acontecido com os meus tios… realmente estar com o meu novo grupo era a melhor terapia do mundo.
            - Nós vamos andando para o salão de refeições OK? Depois vão lá ter connosco. - Disse Chris.
            Levantou-se, foi ao seu armário buscar uma camisola - a que eu mais gostava de lhe ver vestida - e pegou na minha mão.
            - Vem comigo Kia.
            Eu corei outra vez. Ele era o único que me chamava assim mas eu adorava. Por isso fui completamente incapaz de lhe resistir. Levantei-me, pegando na mão dele, e saímos do quarto.
            Seria impressão minha ou quando Chris queria ficar sozinho comigo conseguia sempre? Não encontrámos ninguém, nem um só aluno, enquanto descíamos as escadas e atravessávamos os corredores até chegarmos ao salão de refeições. Eu mantinha-me junto dele, a inspirar o seu perfume delicioso, tentando não olhar directamente nos seus olhos para não me perder neles.
            Sentámo-nos num canto da mesa do 11º ano, onde não estava mais ninguém. Ele sentou-se à minha frente e imediatamente fixou o olhar no meu.
            - Lá vamos nós outra vez… - Murmurei, revirando os olhos.
            Mas antes que eu pudesse pensar na parede invisível que me protegia os pensamentos, Chris alcançou a minha mão por cima da mesa e entrelaçou os seus dedos nos meus. E durante uns minutos eu fiquei a olhar para os nossos dedos entrelaçados e não fui capaz de dizer nada. Nem conseguia olhar para os olhos dele. Estava petrificada pelo choque.
            Então era aquela a sensação de petrificação… não era mesmo nada agradável. Mas a voz intensa de Chris despertou-me do choque.
            - Estás assim tão nervosa por isto?
            E falou como se fosse a coisa mais normal do mundo. Engoli em seco, ofegando para recuperar o batimento normal do coração. Não consegui.
            - Não estou nervosa.
            - Estás sim. O teu coração acelerou e tudo. - E um sorriso glorioso rasgou os seus belos lábios. - Não sei como consegues isso.
            - Isso o quê?
            - Controlar-te tanto.
            Pronto. Perdi-me. Nem valia a pena tentar voltar a pensar com clareza. Tal como o olhar de um Basilisco é mortal para quem o vê directamente, os olhos de Chris podiam não matar mas deixavam seriamente aluado quem quer os fixasse por mais de dois segundos. E eu acabara de me perder neles.
            - Por que é que achas que me estou a controlar?
            Ele sorriu de modo convencido.
            - Porque sei que sim, sinto isso. Sabes, eu não sou nada bom em auto-controlo. - Murmurou.
            - Ai não? - A minha voz saía num murmúrio infantil.
            - Não. Neste momento apetece-me saltar a mesa e beijar-te, sabias?
            Um arrepio subiu-me pela espinha. Oh não, isso é que não… e claro que Chris sentiu o arrepio passar para o seu braço através dos nossos dedos entrelaçados e deve ter entendido isso como um sinal de que eu gostara do que ele dissera, porque o sorriso aumentou e os olhos ganharam um brilho de chamas dançantes. Engoli em seco, sentindo a garganta seca com o medo.
            - Por que é que não beijas?
            Assustei-me. Aquela não era a minha voz. Ou melhor, até podia ser, mas eu não tinha dito aquilo de propósito. Nem queria acreditar que tivesse deixado escapar aquilo. Apetecia-me fugir dali a sete pés. Uma ruga de incompreensão surgiu na testa de Chris.
            - Tu fugirias se eu fizesse isso.
            Apressei-me a acenar com a cabeça para que ele entendesse que tinha razão. Mas não tinha. Eu estava de tal modo presa àquele olhar que não seria capaz de fugir nem que entrasse um louco varrido pelo refeitório adentro.
            - O que é que se passa contigo, Kia? - Perguntou Chris.
            Fechei os olhos para me concentrar melhor. Aquela sensação horrorosa estava a crescer dentro de mim, uma sensação que me deixava com um formigueiro debaixo da pele do corpo inteiro e me fazia querer gritar em agonia. Eu estava a sentir Kalissa a mexer-se dentro de mim, a querer soltar-se, até era capaz de perceber que ela estava a deitar abaixo a parede de tijolos que eu erguera na minha cabeça para a manter afastada. E estava a conseguir. Ia soltar-se, ia dominar-me, ia fazer estragos… tudo porque Chris não me deixava concentrar.
            - Desculpa. - Disse rapidamente.
            Soltei a minha mão da sua e pressionei as têmporas com as pontas dos dedos, mantendo os olhos fortemente fechados para me conseguir acalmar.
            - Kia?
            - Calma Chris! Isto é difícil de explicar…
            Ele aguardou em silêncio enquanto eu me recompunha.
            Para quem me visse por fora eu devia estar com sintomas de quem ia desmaiar. Isso porque a minha dor de cabeça naquele momento era muito forte e difícil de vencer. Eu lutava contra Kalissa, tentando empurrá-la para longe, e ela queria vencer-me e apoderar-se do controlo.
            Comecei a tremer por todos os lados enquanto tinha noção de que não conseguiria aguentar.           
            - Kiara?!
            Abri os olhos e inspirei fundo. Chris estava mesmo à minha frente, debruçado sobre mim e eu quis gritar mas consegui controlar-me. Kalissa era o meu alvo naquele momento.
            - Não te aproximes mais, se prezas a tua saúde. - Avisei Chris.
            Ele não me levou a sério. Limitou-a a rir baixinho e a sentar-se ao meu lado no banco. Suspirei. Tinha conseguido erguer a parede de tijolos e afastado Kalissa para o fundo do poço escuro. Uma batalha ganha, finalmente.
            Mas se fosse sempre assim que Chris me tocava… teríamos um problema. Um grande problema.
            - Estás bem?
            - Sim… agora sim… foi uma tontura.
            - Só isso?
            Valia de alguma coisa teimar com ele? Chris entendia sempre.
            E antes que eu pudesse perder novamente o controlo e ele voltasse à conversa dos beijos, os meus dois salvadores chegaram. Olhei para a porta de entrada do refeitório e vi lá Ryan e Peter, a dirigirem-se a nós. Mas nem por isso Chris se afastou, como se me continuasse a provocar. Levantei-me o mais depressa que pude e corri para os braços de Ryan, tentando escapar à onda de controlo de Chris.
            - Hei, o que se passa? - Perguntou Ryan, confuso.
            - Anda, vamos buscar a Sophie, rápido. - Gaguejei.
            Felizmente ele não me travou, limitou-se a deixar que eu o puxasse comigo escadas acima até ao meu quarto. Com Ryan ao meu lado eu sentia-me realmente mais calma, menos confusa e conseguia aguentar melhor a dor de cabeça. Tudo era mais simples quando não havia tanta pressão sobre os meus ombros.
            - Estás bem, Kiara?
            - Estou… apenas com pressa…
            Entrámos no quarto sem sequer bater à porta. Sophie estava a conversar com Niza, sem ligarem às horas, mas ao verem-me entrar com Ryan calaram-se logo, lembrando-se que tínhamos coisas mais importantes para fazer.    
            - Oh, desculpem, esquecemo-nos completamente das horas! - Disse Niza, levantando-se imediatamente.
            - Pois, deu para ver. Vamos. - Murmurei.
            Elas vieram comigo e com Ryan de volta ao refeitório. Só de pensar que Chris lá estava eu sentia-me logo pior.
            Aquilo não podia continuar.
            Se ele continuasse a picar-me daquela maneira, a tirar-me do sério, acabaria por fazer com que eu soltasse Kalissa e a "víbora" atacaria o meu melhor amigo, que neste momento parecia mais interessado em beijar-me do que em apenas falar comigo.
            Fomos buscar a comida e depois voltámos para a mesa. Sentei-me ao lado de Niza e Peter ficou a olhar para mim, confuso, pois tinha assistido à minha reacção de há bocado e ainda não sabia ao que se devia. Parecia que Chris não lhe contara nada. Melhor assim.
            - Despachem-se a comer, temos de voltar antes das seis da tarde, já sabem como é. - Alertou Sophie.
            Comi em silêncio e depois esperei que eles terminassem e levantámo-nos, seguindo para fora do refeitório. Tive o especial cuidado de ficar de um lado do grupo e de deixar Chris do outro, só para jogar pelo seguro. Saímos para o exterior - ameaçava chover dali a pouco tempo por isso tínhamos de nos despachar a chegar ao centro comercial - e descemos a rua a conversar sobre os fatos de Halloween. Eles estavam entusiasmados pois julgavam que ainda conseguiriam arranjar todos os que queriam.
            Quando chegámos, o centro comercial estava cheio de gente, e reconheci muitos dos nossos colegas, que também deviam ter ido à procura dos fatos. Seguimos para uma das lojas mais próximas.
            - Preparem-se rapazes. - Riu-se Niza.
            Entrámos e começámos a virar e revirar todos os fatos, à procura dos que nos interessassem mais. Eu não fazia a mínima ideia do que devia escolher. Sophie chegou-se junto a mim e segredou-me ao ouvido.
            - Ajuda-me. Não quero que o Ryan veja o meu fato.
            Virei-me para ela e sorri. Uma boa partida já vinha a calhar.
            - Deixa comigo. Vai comprar o fato.
            Ela sorriu, beijou-me na cara e levou Niza consigo, deixando-me entregue aos rapazes. Aproximei-me de Ryan para o manter entretido e para ele não dar pela falta da Sophie.
            - Então, vais mascarar-te de quê?
            - Acho que de Frankenstein ia bem.
            Eu ri-me. Por amor de deus, um monstro e uma gata não ficava nada bem mesmo.
            - Posso dar uma sugestão?
            - Claro. - Sorriu ele.
            - Compra um disfarce de lobisomem ou algo parecido. Um animal de preferência.
            Ele olhou para mim fixamente, como se tentasse descobrir se aquilo era alguma pista sobre o fato de Sophie. Eu limitei-me a encolher os ombros e recuei para um conjunto de cabides com vários fatos. Chris chegou junto de mim no instante seguinte, como se andasse a controlar todos os meus movimentos.
            - Já escolheste o teu fato? - Perguntou.
            - Não.
            - E que tal este?
            Olhei para o fato que ele me apresentava e engoli em seco. Odalisca. Qual era a ideia dele?
            - Achas mesmo que eu vou com isso? - Semicerrei os olhos.
            - Ficavas bem.
            - Oh sim…
            - Vá lá… estou a dizer a verdade. Queres ver? Peter!
            Peter chegou junto de nós num instante.
            - Sim?
            - Não achas que a Kiara ficava bem com este fato?
            Ele tinha mesmo de perguntar ao Peter? Apeteceu-me dar-lhe um estalo. Quando queria, Chris era mesmo inconveniente.
            - Acho que sim. Tiveste uma óptima ideia! Eu acho que a Kiara de odalisca ficava o melhor de sempre. - E riu-se.
            Revirei os olhos. Não ia dar o braço a torcer, nem pensar nisso.
            - Kia… vá lá, faz-me a vontade…
            Chris aproximou-se tanto que se tornou impossível eu recuar ou negar o seu pedido. Tendo noção da figura que ia fazer, limitei-me a morder o lábio inferior para não gritar de terror e revirei os olhos.
            - Pronto, está bem.
            - Óptimo! Vamos avisar a Sophie e a Niza, onde é que elas estão?
            - NÃO! - Gritei.
            Chris e Peter olharam para mim, confusos.
            - Quer dizer… elas devem estar a comprar os fatos dela… ajudem-me a distrair o Ryan, depois explico-vos o porquê.
            Voltei para junto de Ryan, que estava indeciso entre dois fatos de lobisomem bastante bons. Eu ajudei-o a escolher e fomos para a caixa para o pagar.         
            Depois disso foi mais difícil distraí-lo para não perguntar por Niza e Sophie, que estavam a demorar. Afinal onde é que elas se teriam metido?!
            - Acho que sei a que loja elas foram. - Menti, pela quinta vez nesse dia. - Vamos lá vê-las?
            Não fazia a mínima ideia de onde elas tinham ido. Dirigimo-nos a uma loja no outro lado do centro comercial - eu estava a fazer tempo e a tentar arranjar outra escapatória mas parecia impossível - mas não estava a conseguir. E por muito que me fosse custar a seguir, aquele era um caso de vida ou de morte. Olhei para Chris e tentei fazê-lo entender, só através do olhar, que precisava da sua ajuda para enganar Ryan.
            - Eh, olha ali aqueles ténis! Anda daí Ryan…
            Suspirei de alívio quando ele conseguiu arrastá-lo até uma loja de ténis lá do centro comercial. Olhei à minha volta, desejando que as raparigas não se demorassem, mas nunca me passou pela cabeça que Ryan fosse tão apaixonado por ténis. Ficaram mais de vinte minutos a ver todos os pares que havia na loja, dando tempo suficiente a que Sophie e Niza nos encontrassem, já com os sacos nas mãos. Suspirei de alívio.
            - Eu não sou lá muito boa para este papel mas acho que me consegui safar… - Murmurei.
            - Óptimo, obrigada… vamos rapazes, já temos tudo o que é preciso! - Disse Niza, acenando-lhes.
            Ryan, Peter e Chris vieram connosco para fora da loja e seguimos para o castelo. Mas quando chegámos ao exterior vimos que chovia torrencialmente. Ficámos debaixo do telheiro, enquanto pensávamos numa solução para aquilo. Sophie resmungou qualquer coisa e depois recuou uns passos como se fosse ganhar balanço. Nós abrimos alas para ela, sem sabermos o que ia fazer. Sophie puxou o capuz do casaco para tapar o cabelo e semicerrou os olhos em jeito provocador.
            - Vamos lá pessoal… apanhem-me se puderem!
            E lançou-se a correr pela rua acima, no passeio, atingindo uma velocidade tal que me obrigou a usar todas as minhas forças para a apanhar. Ryan, Chris, Peter e Niza seguiam ao meu lado, tentando todos alcançar Sophie, encharcando-nos até aos ossos. Eu sentia um frio descomunal mas não podia parar de correr. Niza ria à gargalhada enquanto tentava não tropeçar, e o seu cabelo ondulava atrás dela como uma cascata de seda preta. Peter ria-se também enquanto tentava apanhá-la.
            Já que estávamos todos molhados não valia a pena lamentar. Sophie abrandou o passo e começou a saltitar alegremente, com Niza ao lado dela. Eu nunca tinha visto duas pessoas tão contentes por estarem ensopadas, mas não consegui manter-me abstraída da alegria delas. Niza pegou na minha mão e fez-me dançar à sua volta aos saltinhos e eu desatei a rir. Era impossível ficar mal-humorada junto delas. E dali a pouco tempo Ryan e Chris também já tinham alinhado na brincadeira e parecíamos um grupo de maluquinhos a dançar pela rua acima, a rir com gargalhadas histéricas e a saltar de alegria. Quando chegámos ao portão do colégio, o porteiro ficou a olhar para nós de olhos arregalados pelo espanto. Deu-nos passagem e nós seguimos escadas acima até às portas principais. Passámos e subimos a escadaria dos dormitórios ainda a rir à gargalhada, mas tentando não fazer tanto barulho antes que nos viessem repreender. Fomos para o quarto dos rapazes e depois de termos entrado Ryan fechou a porta e Niza deixou-se cair de costas em cima da cama dele, rindo à gargalhada.
            - Estou toda encharcada… - Ri-me.
            Chris riu-se também e foi à casa de banho buscar qualquer coisa, para depois voltar para o pé de mim com uma toalha de banho, passando-ma para as mãos.
            - Não quero que te constipes.
            Fiquei a olhar para ele, sem ser capaz de parar de sorrir, enquanto passava a toalha em volta do cabelo para o enxugar como podia. Chris tirou a camisola para a trocar por outra menos molhada. E enquanto ele se virava para ir buscar roupa seca, eu vi-lhe os músculos do abdómen, o que me fez entrar novamente em transe. Afastei-me instintivamente daquela visão atraente e fui sentar-me ao lado de Ryan na cama dele, enquanto ainda enxugava o cabelo. Sophie estava a remexer no armário de Ryan à procura de qualquer coisa que pudesse vestir para se secar.
            - Usa o meu casaco preto se quiseres. - Disse ele.
            Sophie sorriu, pegou no casaco e foi à casa de banho trocar de roupa. Uma súbita rajada de vento entrou pela janela e fez-me tremer de frio. Peter foi fechar a janela enquanto também trocava de roupa por algo mais seco e confortável. Chris voltou para o meu lado quando ficou pronto.
            - Ainda falta cerca de uma hora para o jantar.
            Assenti e levantei-me para ir colocar a toalha na casa de banho. Mas estava demasiado fria e ensopada para ficar com aquela roupa.
            - Eu vou trocar de roupa, já venho. - Respondi, e saí do quarto.
            Corri até ao meu dormitório e apressei-me a despir-me e a vestir outros jeans e uma camisola de manga comprida bem quente. Depois penteei-me e suspirei. Tinha sido uma tarde fantástica, mesmo tendo ficado ensopada. Tinha-me divertido como já não fazia há muito tempo. Era óptimo poder passar algum tempo com o grupo.
            Voltei para o quarto dos rapazes. Agora que já estavam secos, a moleza começava a atingir toda a gente. Sophie e Ryan estavam deitados ao comprido na cama dele, de olhos fechados como se realmente estivessem a dormir. Niza e Peter falavam sobre qualquer coisa na cama dele, mas baixinho para não incomodarem Sophie e Peter. E Chris estava sentado no parapeito largo da janela do quarto deles, a olhar para a chuva a cair lá fora, com um ar tão adorável que tive uma vontade louca de correr até ele e abraçá-lo. Controlei o impulso e aproximei-me devagar dele.
            - Gostaste da tarde? - Perguntei.
            - Sim, imenso. Deu para me divertir um bocado.
            E olhou-me intensamente. Eu suspirei, preparando-me para o que aí vinha, e enfiei as mãos nos bolsos dos jeans.
            - Chris… eu queria dizer-te uma coisa…
            - Sim?
            - Desculpa a minha reacção da hora de almoço. Não queria ofender-te.
            - Não o fizeste. Fiquei apenas curioso pela razão porque agiste daquela maneira. - Respondeu ele, sorrindo.
            - Pois… eu não te consigo explicar isso… mas espero que não fiques zangado comigo…
            - Nunca. Isto não alterará nada entre nós.
            Sorri, sentindo-me mais aliviada. O melhor de tudo era que ele me entendia como ninguém e sabia sempre o que tinha de dizer para me alegrar.
            - Acho que o Halloween vai ser mesmo fixe. - Murmurei.
            - Podes ter a certeza. Uma noite memorável.
            Sorri e olhei através da janela. Ia ser realmente. Eu tinha uma estranha impressão de que seria uma noite de revelações. Chris passou o braço em volta dos meus ombros e fixou o olhar na direcção do meu. E assim ficámos, em silêncio, a olhar para lá do horizonte, a ver a chuva a cair a potes. O céu estava cinzento, tão baixo que me causava alguma claustrofobia. Se estivesse lá fora seria difícil respirar, o ar era espesso e consternador. Mas ali dentro, nos braços de Chris e com a sua respiração doce junto ao meu rosto, sentia-me muito bem, completa e preparada para enfrentar o que quer que aí viesse. Sorri e aninhei-me mais nos braços de Chris.
            «Kalissa, nem te atrevas a estragar o dia.»



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