domingo, 10 de outubro de 2010


Capítulo 8


Toda A Gente À Minha Volta Deve Achar Que Eu Endoideci…



            Eu estava a tentar lembrar-me de como se respirava em condições. E a tentar controlar os batimentos cardíacos também. Um, Dois. Um, Dois. Pum, pum. Pum, pum.
            Só que em vez de o meu coração bater compassadamente, ele assemelhava-se ao galope de um cavalo de corrida. Eu estava tão alterada que as minhas mãos não conseguiam parar de tremer.
            Deixei-me ficar ali, sentada no chão, com as costas encostadas à parede debaixo da janela de parapeito largo, a tremer como varas verdes, a morder os lábios até estes fazerem sangue (bah, que gosto horrível que ficou na minha boca!) e a tentar encontrar uma maneira de escapar àquela situação durante, aproximadamente, cinquenta minutos. Depois comecei a ouvir as vozes de Niza e Sophie no corredor e pisquei os olhos para fazer desaparecer as lágrimas, enquanto tentava recuperar o controlo no meu corpo. Elas entraram no quarto, rindo baixinho para não me acordarem, pois supostamente elas pensavam que eu já estava a dormir. Mas quando Sophie acendeu a luz do candeeiro do tecto e me viu ali encolhida no chão, parou logo de rir. Niza também ficou preocupada e correu na minha direcção, acocorando-se à minha frente.
            - Kiara?! O que se passou?!
            Como é que eu lhe dizia? Como é que eu revelava aquilo que me deixara assim? Não era capaz. Não conseguia por mais que tentasse. Fechei os olhos e Niza puxou-me para os seus braços, apertando-me com força enquanto me embalava e me dizia que ia ficar tudo bem. Espantou-me aquela reacção dela, um acto quase maternal. Era assim que a minha tia me embalava quando eu estava assustada. Depois ela dizia que ficaria tudo bem e o medo desaparecia de mim. Mas as promessas sussurradas de Niza não surtiram o mesmo efeito em mim. Sophie, depois de fechar a porta, veio sentar-se ao meu lado.
            - O que é que que aconteceu?
            Eu queria falar mas os soluços não me deixavam.
            Eu já devia saber que aquilo ia acontecer. Onde é que eu tinha a cabeça para sair com o Peter?! Onde é que eu tinha a cabeça quando concordara em deixá-lo acompanhar-me ao quarto?
            Onde é que eu tinha a cabeça quando pensara que ele era só meu amigo?
            Aquela situação tinha escapado ao meu controlo. Era impressionante a quantidade de situações daquelas com as quais eu me deparava. Pequenos gestos, pequenas ocasiões que escapavam ao meu domínio e que faziam com que Kalissa se pudesse soltar. Naquele instante, eu sabia que ela seria capaz de se soltar se quisesse. Eu estava demasiado confusa para me concentrar na parede de tijolos que encurralava a minha inimiga. 
            - Kiara, estás a preocupar-nos. - Murmurou Niza, tensa de mais.
            Eu cravei o meu olhar no dela e tentei arranjar forças. O que eu mais precisava naquele momento era de Ryan. Só ele me conseguiria acalmar e chamar à razão naquele momento. Mas não me atrevi a pedir que Sophie o fosse chamar. Ela não ia ficar feliz quando soubesse na confiança que eu tinha no seu amado. Aliás… era melhor não meter mais rapaz nenhum no meio daquela confusão. Claro que isso também ia desagradar a Peter…
            Portanto, restava-me o poder da minha melhor amiga. Niza pousou as mãos nos meus ombros trémulos e encarou-me fixamente.
            - Foi o Peter? O que é que ele te fez? - Perguntou ela, preocupada.
            Pois. Era assim tão óbvio? Esperava realmente que não.
            - Ele… eu… não queria… mas…
            Não valia a pena tentar falar. Estava demasiado nervosa e atarantada e a voz saía em gaguejos patéticos. É claro que nem Sophie nem Niza percebiam aquilo que eu estava a tentar dizer. Por isso voltei a encostar-me à parede e suspirei enquanto inclinava a cabeça para trás.
            - Aconteceu alguma coisa quando ele a veio trazer aqui ao quarto. - Respondeu Sophie, de olhos pregados nos meus.
            Assenti com a cabeça e senti as lágrimas a molharem-me os olhos. Aquilo não era justo. Não queria nada ter de passar por aquela situação. O que é que Peter queria de mim? Eu não gostava dele o suficiente para namorarmos, nem me sentia bem a enganá-lo.
            Mas eu não sabia como lidar com isto. Era a primeira vez na vida que alguém me amava desta maneira. Eu não sabia como proceder, o que dizer, o que fazer, nada de nada. Até uma criança de cinco anos era capaz de ser mais experiente que eu! Senti-me completamente estúpida nesse instante.
            - Ele… beijou-me… - Choraminguei.
            A minha voz soava horrivelmente. Os olhos de Sophie arregalaram-se de espanto e Niza deixou escapar um "ah!" sumido, que ainda me deixou a sentir pior. E se elas achassem que a má da fita ali era eu, por lhe ter dado esperanças? Realmente era o que mais me faltava: que nem as minhas amigas ficassem do meu lado.
            - Oh Kiara… eu não fazia ideia que ficarias neste estado…
            Deitei a cabeça no ombro de Sophie e fechei os olhos. E agora? O que é que eu podia fazer para remediar a situação?
            - Ele beijou-te assim, sem mais nem menos? - Perguntou Niza.
            Disse que sim com a cabeça porque naquele momento não conseguia falar em condições.
            - Mas tu… não gostas dele?
            Não era mais do que óbvio pelo estado em que eu me encontrava que não queria nada que Peter me tivesse beijado?
            - Não. - Limitei-me a murmurar.
            - Bem… estás-me a confundir… tu foste sair com ele e tudo, ao cinema e comer gelado e… até ficaste na equipa dele a jogar às cartas e tudo…
            Fixei os olhos nos de Niza. Será que eu tinha sido assim tão parva ao ponto de ser a única a não perceber a jogada de Peter?
            - Mas eu só gosto dele como amigo…
            Sophie afagou-me os cabelos e Niza apertou as minhas mãos entre as suas. Durante uns momentos, deixei-me ficar a apreciar o apoio delas, sem querer pensar em mais nada. Bastava-me tê-las ali comigo para que me sentisse menos desesperada. Só que Niza parecia com vontade de esclarecer já tudo.
            - Ouve, não tens de ficar em pânico. Vamos resolver isto.
            - Não… ele vai odiar-me…
            - Não vai nada! O Peter não odeia ninguém! - Insistiu Niza.
            - Mas… ele pareceu gostar… quando ele souber que eu não gosto dele… bem ele vai ficar a odiar-me, tenho a certeza…
            - Não digas tolices. Ele vai compreender. Também devia ter algum juízo naquela cabeça! Ele nem sabia se tu estavas mesmo interessada nele e foi beijar-te dessa forma… - Sophie revirou os olhos e continuou a fazer-me festinhas no cabelo.
            - Então acham mesmo que ele não me vai odiar?
            - Não. Claro que não. E esperemos que não lhe passe pela cabeça a infeliz ideia de fazer uma grande cena por causa disto. - Respondeu Niza.
            E eu quis acreditar nas suas palavras. Quis acreditar que ia mesmo ficar tudo bem. Esforcei-me por sorrir e vi a esperança a acender-se no rosto dela. Niza só queria ver-me bem.      
            - OK… amanhã tudo se vai resolver…
            - Sim, exactamente. - Disse Sophie, tentando passar alguma da sua força para mim.
            Eu inspirei fundo e tentei mentalizar-me disso. Não era o fim do mundo. Por que é que eu estava assim tão mal?
            Ah sim: porque o meu primeiro beijo tinha corrido terrivelmente mal.    
            Sophie ajudou-me a levantar.
            - Estás melhor?
            - Estou… obrigada às duas.
            - Não agradeças, estamos cá para isso. - Niza piscou-me o olho.
            Enquanto eu trocava de roupa e me enfiava na cama, fiquei a pensar naquilo que ela disse. Afinal era óptimo ter amigos. Se eu soubesse que a sensação era tão boa… talvez me tivesse esforçado mais para manter as relações que tivera anteriormente com outras pessoas e que Kalissa destruíra completamente.
            Mas eu estava confiante que ela não conseguiria destruir o que me unia a Niza, Sophie, Ryan, Chris e… Peter.


            Lá estava aquela dor de cabeça terrivelmente irritante. Pisquei os olhos e olhei à minha volta. O quarto era fracamente iluminado pela luz do sol que conseguia atravessar os espessos cortinados da janela. As camas de Niza e Sophie encontravam-se na penumbra e a minha só estava parcialmente iluminada. Destapei-me e levantei-me, esticando a mão para alcançar o meu telemóvel, que estava como sempre em cima da mesa-de-cabeceira. Vi as horas e a data. Nove e meia da manhã, dia 15 de Setembro. Oh não… mais uma semana inteira que tinha passado… rangi os dentes para controlar a vontade que tinha de gritar. Como é que aquela parasita conseguia controlar o meu corpo durante tanto tempo?!
         Depois virei-me e fui tomar banho, enquanto esperava que as outras duas acordassem. E agora? O que é que podia ter acontecido durante essa semana que me estragasse os planos? E quem é que me podia informar sem dar nas vistas?
         Não me apetecia mesmo nada ir falar com o padrinho da parasita. Não, nem pensar nisso. Sempre que falava com ele irritava-me bastante. Por isso teria de arranjar outra pessoa.
         Mariah.
         Sim, ela era a minha nova aliada. Aliada… durante um quanto tempo. Depois deixaria de ser necessária. Porque na verdade eu não me interessava muito por Mariah… mas sim pelo namorado dela.
         Fechei os olhos enquanto a água quente caía sobre mim, lavando a minha pele da presença desagradável de Kiara. Agora era só eu. E ia conseguir manter-me ao poder durante mais tempo. Não podia deixar que ela ficasse demasiado forte para me conseguir expulsar de vez.
         Quando acabei de tomar banho voltei para o quarto. Niza já tinha acordado. Olhou para mim e sorriu, parecendo ao mesmo tempo feliz por me ver e também preocupada. Hum… o que é que se teria passado com Kiara para que a santinha da melhor amiga dela estivesse toda preocupada?
         - Bom-dia Niza. - Desejei, encaminhando-me para o roupeiro.
         - Oh, olá Kiara… estás bem?
         Suspirei. Se algo tinha realmente acontecido, então era bom que eu descobrisse, para não meter os pés pelas mãos. Pelo sim pelo não era melhor fazer um ar algo tristonho.
         - Mais ou menos…
         Sophie agitou-se na cama nesse momento e Niza levantou-se, aproximando-se de mim.
         - Vais falar com ele sobre o que aconteceu?
         Ele? Qual ele? Do que é que ela estava a falar? Será que Kiara arranjara um namorado? Ah, ela que nem se atrevesse a isso! Os meus lábios não podiam beijar quem eu não quisesse. Tentei mostrar-me confusa, até algo triste, e Niza pousou as mãos nos meus ombros. Não a sacudi, apenas para não dar nas vistas, mas foi o que me apeteceu fazer.
         - O Peter não vai odiar-te. Acredita em mim.
         Peter? Ah sim, o amigo de Kiara, companheiro de quarto de Ryan. Hum… o que é que teria acontecido entre ele e Kiara? Será que ela gostava dele? Tentei escrutinar os pensamentos de Niza à procura de alguma pista, mas tornou-se muito difícil. Era difícil entrar na cabeça daquela miúda.
         - Bem… eu acho que sim… para resolvermos as coisas…
         - Pois. É que se não gostas mesmo dele não podes deixar que esta situação se repita.
         Ah, Peter gostava de Kiara e ela não gostava dele. Perfeito! Parece que a parasita estava a tornar a minha missão mais fácil. Será que podia mesmo contar com ela? Que Kiara ajudaria na sua própria auto-destruição? Seria mesmo fantástico se ela desse uma ajudinha de vez em quando.
         - Achas mesmo que ele gosta de mim? - Tentei fazer o meu ar mais inocente e Niza caiu na armadilha.
         - Claro que sim! Se te beijou é porque gosta de ti…
         Apeteceu-me gritar de raiva. Peter?! Onde é que Kiara tinha a cabeça para deixar que ele a beijasse?! Oh por amor de deus, aquela miúda só fazia asneiras atrás de asneiras!
         Se bem que…
         Daquela vez não era uma asneira assim tão grande. Eu podia virar a situação a meu proveito. E se isso servisse para provocar ciúmes em Brand e, consecutivamente, em Mariah, até podia dar jeito. Eu até podia brincar um bocadinho com Peter… afinal, ele até não era nada de se deitar fora…
         - Sabes Niza, eu estive a pensar muito na situação e acho que… talvez lhe possa dar uma oportunidade…
         Os olhos de Niza arregalaram-se tanto que pareciam ir saltar-lhe das órbitas, enquanto o choque se instalava no seu corpo. Sophie levantou a cabeça da almofada e como escutou a última frase, ficou tão perplexa quanto a amiga.
         - A sério? Queres mesmo fazer isso?
         - Bem, eu gosto mais ou menos dele… eu acho que ontem estava demasiado confusa para reagir mas… eu acho que até gostei que ele me beijasse…
         Eu nunca andei numa escola de teatro. Nunca tinha participado em nenhum filme de drama/comédia/romance, pois caso isso tivesse acontecido, eu tinha ganho todos os prémios de representação que havia para ganhar.
         Niza e Sophie acreditaram completamente naquilo que eu disse. Sinceramente, elas eram tão fáceis de enganar…
         - Bem… eu fico muito feliz por ti!
         E então, Niza abraçou-me. Eu fiquei imóvel, sem saber se devia afastá-la como me apetecia fazer ou se devia abraçá-la, tal como Kiara fazia. Abraçar pessoas das quais não gostava não fazia nada o meu género, pelo que me limitei a ficar quieta. Quando ela recuou, eu vi os olhos de Sophie a brilharem de entusiasmo.
         - O Ryan também vai ficar muito feliz por ti. - Sorriu Niza.
         Ah pois, agora não me podia esquecer de representar bem o papel para o resto do grupo dos totós. Oh por favor… talvez o meu plano fosse mais difícil do que eu pensara.
         Depois de esperar que elas se arranjassem, seguimos para o salão de refeições para tomarmos o pequeno-almoço. Felizmente, Peter, Ryan e Chris estavam sentados lá ao fundo. O facto de eles já ali estarem facilitava imenso a minha tarefa. Apressei o passo para me ir sentar ao lado de Peter, mesmo em frente a Chris. Niza e Sophie sentaram-se uma de cada lado de Ryan.
         - Olá Kiara. - Disse Chris.
         Eu sorri-lhe. Tinha de lembrar-me que Kiara era demasiado simpática para toda a gente. Depois Peter passou o braço em volta da minha cintura. Hum… aquilo ia ser tão mais fácil do que eu pensara… virei o rosto na direcção do seu e sorri-lhe. E sem hesitar só por um segundo, como se realmente me lesse o pensamento, Peter inclinou-se e beijou-me só ao de leve. As exclamações de espanto por parte de Niza, Ryan e Sophie pareceram-me um incentivo, uma prova de que estava a conseguir aquilo que queria. Enlacei os braços no pescoço de Peter e beijei-o intensamente.
         Ele estava a preparar-se para me beijar mais a sério quando eu recuei, passando a mão pelo cabelo para o pentear melhor e olhando para as minhas supostas amigas. Elas estavam radiantes. Sophie estava quase ao ponto de bater palmas. Ryan estava atónito com tudo aquilo e Chris mantinha o profundo olhar cor de safira cravado em mim. Não ousei fixar o meu olhar no seu.
         - Vou buscar as minhas waffles. - Gaguejei, levantando-me.
         Aproximei-me da mesa do buffet e passei os olhos pelo salão, tentando localizar Brand no meio da multidão. Onde é que ele se teria enfiado?
         Não o vi, portanto desisti e voltei para a mesa com o meu pequeno-almoço, sentei-me ao lado de Peter e comecei a comer, enquanto os restantes membros do grupo de Kiara se levantavam e iam buscar os pequenos-almoços, para depois se voltarem a sentar pela mesma ordem. Peter olhava-me com uma adoração óbvia. Coitado. Ia ter tanto que sofrer…
         - O que vais fazer hoje? - Perguntei.
         - Tenho de treinar mas… posso pedir despensa ao professor se quiseres.
         Ah não, isso já era de mais. Já chegava ter de o aturar quando não havia mesmo alternativa.
         - Hum… deixa estar… eu acho que gostaria de ver o teu jogo. Fico a assistir ao treino, pode ser?
         - Sim… pode ser, claro.
         Sorri-lhe e continuei a comer. Se Peter fosse sempre tão fácil de convencer a minha vida ali dentro tornar-se-ia bem melhor. Quando acabei de comer - altura que coincidiu com a entrada dos Desportistas e das Raparigas da Claque no refeitório - limpei a boca ao guardanapo e levantei-me.
         - Onde vais? - Perguntou Peter, ansioso.
         - Ter com uns amigos.
         Agarrei o seu rosto entre as minhas mãos e beijei-o com fervor. Antes mesmo de ele me conseguir pôr as mãos na cintura eu já tinha recuado e quase corrido até ao outro lado do refeitório, onde o grupo ao qual eu desejava pertencer se tinha sentado. Mariah sorriu-me ao ver-me aparecer, embora estivesse mais desconfiada e espantada que alegre.
         - Olá Kiara!
         - Oi meninas, rapazes. - Sorri a todos. - Tudo bem por aqui?
         - Tudo. Senta-te Kiara! Estávamos agora mesmo a falar daquele Domingo em que fomos às compras. Foi fantástico, não achas? - Respondeu uma das raparigas que ali estava sentada.
         - Pois foi. Temos de repetir a saída. Uma tarde só de raparigas faz muito bem. - Sentei-me ao lado do outro rapaz giro que me tinha colocado o braço em volta dos ombros da última vez.
         Mas agora ele não podia fazer isso. Daria muito nas vistas. Peter ia reparar, porque apesar de estar de costas para ele, era capaz de apostar duzentos dólares em como ele estava a olhar fixa e desesperadamente nesta direcção.
         - Ouvi dizer que hoje têm treino.
         - É verdade! E nós vamos ficar a treinar também, as coreografias para a claque. - Respondeu Mariah, toda orgulhosa.
         - Hum… ainda bem… achas que posso assistir?
         Mariah trocou um olhar demorado com outra rapariga e depois sorriu-me.
         - Não.
         Fiquei decepcionada. Se ela achava que me podia pôr esse travão estava muito enganada.
         - Não, claro que não ficas a assistir. - Apressou-se ela a responder, ao ver a minha cara. - Tu podes ficar num posto diferente desta vez.
         Aquilo estava a despertar-me o interesse. O que é que ela iria propor? Quais eram os planos de Mariah?
         - Não te estou a perceber…
         - Sabes Kiara, eu e as minhas amigas estivemos a falar e achamos que tu… devias fazer parte da nossa Claque.
         Eu queria dar um salto de alegria mas contive-me. Uau. Já tinha subido uns três ou quatro degraus na escada que me levava ao posto de Mariah. Sorri-lhe alegremente, tentando mostrar-lhe o quão feliz estava por ela me fazer o convite.
         - A sério? Querem mesmo?!
         - Sim. Tu tens potencial para ser uma Rapariga da Claque. - Mariah fixou os olhos azuis-claros nos meus com uma intensidade esmagadora. - Então, aceitas a proposta?
         - Claro. Obrigada pelo convite. Mas eu… nem tenho equipamento…
         - Isso arranja-se, não há problema.
         Brand piscou-me o olho quando Mariah não estava a ver. Apeteceu-me rir na cara daquela Barbie que nem se apercebia que o namorado reparava nas outras raparigas enquanto estava com ela. Mas o controlo que eu tinha em não mostrar os meus sentimentos permitiu-me ficar quieta enquanto suportava a ousadia de Brand.
         Depois de todos terem terminado o pequeno-almoço, levantaram-se e eu segui com eles para fora do refeitório, sem sequer olhar para a zona onde Niza e os outros estavam sentados.
         Os Desportistas dirigiram-se para a grande clareira que servia de campo de treino. Já lá estavam algumas alunas mais novas à espera para ver o treino. Mariah conduziu-me e às suas amigas - que mais se assemelhavam a patinhos atrás da mãe pata, seguindo-a para todo o lado - para os balneários femininos. Mariah foi a um dos armários buscar qualquer coisa e passou-ma para as mãos com um grande sorriso vitorioso.
         - É o teu equipamento. Julgo que deve servir-te, pois vestimos o mesmo tamanho.
         Observei o conjunto que ela me dera. Era o típico equipamento de uma cheerleader: minissaia e top de alças. Sorri, mostrando-me agradecida, e comecei a despir-me para trocar de roupa. Quando acabei virei-me de frente para elas.
         - Como é que me fica?
         Bem, eu nunca julguei que ela fosse reagir assim. Que Mariah era muito invejosa e gostava de ser o centro das atenções eu já sabia, mas nunca julguei que fosse reagir daquela maneira. Primeiro ela tentou não se mostrar desagradada e no fim acabou por cruzar os braços e colocar aquele sorriso cínico cujas intenções eu conseguia perceber na perfeição.
         - Fica-te bem. - Respondeu, quase como se estivesse a rosnar.
         Deu meia-volta e chamou as suas amigas atrás dela para fora do balneário. Eu segui com elas em silêncio. Quando chegámos ao campo, os rapazes estavam a fazer o aquecimento para começarem a treinar. Peter olhou para mim e sorriu apaixonadamente. Eu retribuí-lhe o sorriso e juntei-me às Raparigas da Claque. Mariah, ostentando o porte de uma líder exemplar, começou a andar por entre as suas amigas, observando-as fixamente, até os seus olhos se cravarem nos meus.
         - Este é o primeiro treino da Kiara. Vamos mostrar-lhe o que temos! Vamos lá meninas!
         Eu recuei dois passos para lhes dar espaço de executarem a coreografia. OK, há que dizer a verdade: elas são boas naquilo que fazem. Os Desportistas deixaram inclusive de treinar só para observar a coreografia arrojada das cheerleaders. Mariah tinha o papel principal claro, e na verdade toda a coreografia girava à volta dela.
         Não por muito mais tempo. Em breve eu seria a Chefe de Claque.
         Quando elas acabaram com os saltos, os mortais, as voltinhas e piruetas, Mariah sorriu-me e disse-me que tentasse imitar os passos de uma das suas amigas. Eu cheguei-me à frente, olhei uma última vez para Brand, apenas para o provocar mais um pouco, e comecei a executar os passos que tinha decorado mentalmente. Quando acabei, ouviram-se bastantes aplausos, e vi uma sombra de raiva a passar pelo rosto de Mariah, à qual ninguém ligou excepto eu.
         - Muito bem, tu estás mesmo apta a entrar para a Claque. Agora vamos pôr a música e toca a mexer que não temos o dia todo.
         Mariah foi ligar o rádio portátil que tinha colocado no chão relvado e a música invadiu o espaço à nossa volta. Observei a posição em que as minhas colegas de Claque se colocavam e imitei.
         E durante mais de duas horas fizemos coreografias atrás de coreografias. Eu dei o meu melhor para conseguir acompanhá-las, para não dar motivos a Mariah para me despromover. Mantive aquele sorriso de quem está mesmo a gostar do que está a fazer durante todo o tempo. No fim do treino, Mariah veio ter comigo, rodeada por duas louras oxigenadas que mais pareciam as guarda-costas dela.
         - Parabéns Kiara, tu tens futuro nisto.
         - Obrigada Mariah.
         - Mas uma Rapariga da Claque tem de se manter perto das suas amigas. E que tal… vires jantar connosco hoje?
         Os seus olhos tentaram atiçar-me mas aguentei-me firme.
         - Claro, não haverá problema.
         Mariah sorriu uma última vez e afastou-se com as outras duas. Eu suspirei de alívio. Aquela miúda era tão falsa que me punha fora de mim. Cerrei as mãos em punhos para me controlar e fechei os olhos. Manter o controlo era essencial naquela situação.
         Nem me apercebi que ele tinha chegado até sentir os seus braços fortes em volta da minha cintura, apertando-me e virando-me para o seu peito musculado.
         - Estiveste maravilhosa.
         Peter fitava-me intensamente, deslumbrado com a minha actuação. Sorri, envolvendo o seu pescoço com os meus braços e aproximando mais o meu rosto do seu.
         - Obrigada.
         - Esta noite ficas comigo na Sala de Convívio?
         - Pois… - Fiz um ar desapontado e até um pouco enfadado. - Desculpa… mas a Mariah convidou-me para jantar com elas. E eu tenho medo que ela me expulse da Claque se eu não estiver muito tempo com elas. Peter… este projecto é muito importante para mim…
         As sobrancelhas dele franziram-se mas não deixou cair o sorriso.
         - OK… não há problema…
         - Claro que não. E Peter… mesmo que eu não esteja contigo todos os segundos do meu dia… eu gosto mesmo de ti.
         Oh meu deus, eu disse mesmo aquilo?!
         - Eu também te adoro Kiara.
         E beijou-me. Os seus lábios quase esmagaram os meus. Eu já tinha beijado muitos rapazes na vida, por isso não achei nada de especial. Mas de certeza que, santinha como Kiara era, o beijo da noite anterior devia ter sido o primeiro da sua vida.
         Quando separei os meus lábios dos de Peter e recuei, ele não tentou prender-me.
         - Então isto é o quê… andamos? - Perguntou ele, descontraído.
         - Hum… por agora contenta-te em saberes que gosto de ti. Sabes Peter… não sou muito boa em compromissos… e odeio realmente sentir-me presa. - Murmurei, piscando-lhe o olho.
         Depois libertei-me totalmente dos seus braços e saltitei até junto das Raparigas da Claque, que voltavam calmamente para o Balneário Feminino a fim de trocarem de roupa. Eu abstraí-me da conversa delas. Naquele momento precisava de compor o meu plano com cuidado.
         Não podia estar demasiado tempo com os Desportistas e com as Raparigas da Claque senão Peter, Ryan, Chris, Niza e Sophie iriam começar a desconfiar; pelo contrário, se estivesse muito tempo longe deles, Mariah pensaria que eu não estava realmente interessada no posto que ela me dera e acabaria por me tirar do seu grupo. E eu não podia permitir que isso acontecesse.
         Portanto, a partir dali, tinha de dar quantidades iguais de atenção a ambos os grupos. Se a minha energia chegasse para tanto, claro…
         - Então Kiara, o que vais fazer depois do almoço? - Perguntou Mariah, tentando parecer despreocupada, mas eu sabia que ela estava ansiosa por encontrar uma maneira de me picar.
         - Hum… acho que vou ficar pelo quarto… tenho coisas para fazer. Mas logo à noite janto convosco e até podemos ficar juntos na Sala de Convívio, o que me dizes?
         As amigas dela sorriram, concordando com a minha ideia, e Mariah apressou-se a concordar também. Hum… ela sabia jogar… não fazia a mínima ideia de que eu já estava ao corrente das suas intenções. Ainda julgava que eu a via como uma boa líder, uma rapariga simpática e fixe da qual todas querem ser amigas. Mas não. Eu era a única Rapariga da Claque a ver a verdadeira Mariah Andrews. Por debaixo daquela aparência de Barbie adorável, ela escondia uma miúda ansiosa por poder, desejosa de atenções, desesperada por fama. Comecei a ter pena dela. Quando eu começasse a destruir o seu reinado glorioso desejaria nunca se ter metido comigo.
         Quando acabei de trocar de roupa, despedi-me delas e saí da casinha de madeira, atravessando calmamente o pequeno bosque que rodeava o castelo. Na verdade não me apetecia mesmo nada ir para o quarto. Não faria mal nenhum que Kiara levasse umas quantas faltas de trabalhos de casa… e eu precisava mesmo de descontrair.
         Eu sabia o caminho para a clareira da árvore velha. Tinha decorado mentalmente o percurso que percorrera naquela tarde de segunda-feira, o segundo dia de Kiara ali na Blackstone Private School. Por isso não demorei muito tempo até chegar ao meu local secreto e sossegado, onde podia estar sozinha e em paz.
         Subi à grande e velha árvore e deitei-me num dos seus ramos mais largos, fechando os olhos e deixando-me ficar a apreciar o silêncio que me rodeava. Mais ninguém sabia daquele cantinho encantado além de mim, pelo que podia estar à vontade.
         Deixei-me ficar ali durante imenso tempo. Não sentia fome. Nem me apetecia ir para o salão de refeições e lidar com as cenas de ciúmes de Niza e Sophie por eu ter passado tempo com Mariah. Eu não queria saber das opiniões delas. Tal como dissera a Peter, eu era livre e odiava sentir-me presa, muito menos por pessoas que não tinham qualquer poder sobre mim.
         Mais tarde ou mais cedo arranjaria maneira de tirar Kiara de dentro de mim. Voltar a ser apenas eu. O meu corpo, a minha mente e a minha alma. Só meus.
         Eu não podia ficar ali deitada para sempre, pelo que suspirei e desci da árvore. A tarde já devia ir a meio. Mas eu não queria saber. Precisava de comer qualquer coisa porque agora sim, a fome estava a apertar. Encaminhei-me lentamente para o castelo, felizmente não me cruzando com ninguém no caminho, e percorri os corredores sombrios e os muitos degraus até alcançar o meu dormitório. Entrei.
         - Olá Kiara! Estávamos tão preocupadas contigo!
         Niza levantou-se da cama, correu até mim e abraçou-me com força.
         - Calma. Eu estou bem.
         - Mas podias não estar! Onde é que te enfiaste?!
         Semicerrei os olhos e expirei furiosamente.
         - Eu não sou nenhuma criança, OK? Não precisas de andar atrás de mim como se fosses minha mãe.
         Ela recuou, chocada com as minhas palavras, mas não tive tempo para me importar com que o que ela pensava. Fui à secretária buscar um dos meus livros e levei-o comigo até à cama, onde me deitei de barriga para baixo. Abri o livro e comecei a ler.
         - Mas Kiara… tu nem almoçaste… não estás com fome?
         - Não. - Menti, sem tirar os olhos da página que estava a ler.
         - Bem… eu pensei que tivesses fome por isso trouxe comida para aqui…
         Levantei os olhos até encontrar os dela. A sério? Ela tinha mesmo feito isso? Perfeito. Assim o meu estômago ia finalmente deixar de roncar de fome.
         - Eu não estou propriamente a morrer de fome… mas já trincava qualquer coisa.
         Niza sorriu e foi buscar qualquer coisa a uma das gavetas do seu armário. Depois veio sentar-se ao meu lado na cama, passando-me o que tinha trazido.
         Era uma fatia de bolo de limão. Mmm… tão bom…
         - Obrigada Niza.
         Dei uma trinca, saboreando o bolo. Talvez eu estivesse a gostar assim tanto apenas pelo facto de ter uma fome avassaladora.
         - Bem, a Sophie está com os rapazes lá em baixo e eu vim para aqui fazer os trabalhos de casa… já fizeste os teus?
         - Não, e também não estou com cabeça para os fazer.
         - Se quiseres eu faço-os por ti, já estou quase a acabar os meus.
         Sorri. Aquela miúda era tão angelical que até enervava.
         - Obrigada Niza. Agradecia-te muito se o fizesses.
         - Não há problema nenhum…
         Afastou-se, indo sentar-se na cadeira em frente à secretária, e ficou em silêncio a fazer os meus deveres. Boa. Menos um ponto na lista de preocupações. Voltei à minha leitura, e quando acabei de comer a fatia de bolo e o capítulo que estava a ler, levantei-me, fechei o livro e fui colocá-lo de novo em cima da secretária.
         - Vais sair? - Perguntou Niza.
         - Vou até lá abaixo.
         Os olhos verdes de Niza cravaram-se em mim com uma força tal que eu tive a certeza que ela ia começar com outro ataque de ciúmes. Oh por amor de deus… eu tinha mesmo de aturá-la, logo agora?
         - Vais estar com a Mariah?
         - Vou. Porquê? Eu acho que não há nenhum problema nisso.
         Niza suspirou e abanou a cabeça em desacordo.
         - O que foi?
         - Bem, tu mudas de opinião demasiado depressa! Um dia dizes que não queres saber dela para nada e no outro reages assim. Eu se fosse a ti decidia-me.
         Ferrei as unhas nas palmas das mãos para me controlar e não gritar com ela. Mais uma a tentar controlar-me?
         - Niza, vê se entendes isto: eu não quero criar rivalidades com ninguém, entendes? E agora que consegui entrar para a Claque, quero mesmo manter-me lá. Eu sempre quis fazer parte de uma claque.
         - Pois… não me tinhas dito isso…
         - E eu não quero que a Mariah pense que eu não estou interessada na Claque e me tire de lá, entendes? E é isso que ela fará se vir que eu não passo tempo nenhum com eles.
         - Achas mesmo? - Eu já estava a começar a convencê-la.
         - Claro que sim. Eu já expliquei isto ao Peter. Tenho de fingir que gosto muito de estar com elas para não criar problemas.
         Tal como finjo que gosto muito de vocês, pensei mas não disse nada. Niza sorriu, acreditando profundamente naquilo que eu dissera.
         - Está bem… só não quero que te passes para o lado deles.
         - Isso nunca vai acontecer.
         Ela sorriu-me e depois deixou-me ir embora. Assim que saí do quarto, até pareceu que o ar ficou mais puro. Percorri o corredor silencioso até chegar à escadaria e desci-a. Daí, encaminhei-me para a Sala de Convívio, onde sabia que Mariah e as suas amigas deviam estar reunidas com os Desportistas.
         Eu ia conseguir levar aquilo até ao fim custasse o que custasse. Não havia de ser assim tão difícil convencê-los que era uma santinha, tal como Kiara dizia ser. Se ela era capaz de arruinar os meus planos…
         Então eu arruinaria os seus.


         Abri os olhos e suspirei, espreguiçando-me. Olhei à minha volta e reparei que Niza e Sophie ainda dormiam nas camas ao lado da minha. Sorri.
            Depois, a terrível sensação atingiu-me em cheio no peito.
            Curvei-me sobre mim mesma. Oh não… aquele era o aviso que eu mais temia receber, e que mesmo assim, parecia chegar sempre quando eu não precisava nada dele. Kalissa tinha atacado outra vez.
            Levantei-me, preocupada, e vi a data no visor do meu telemóvel. Apeteceu-me gritar de terror mas consegui não o fazer, enquanto o meu corpo era percorrido por tremores.
            Dia 19 de Setembro.
            Tinha passado demasiado tempo dessa vez… eu já devia saber que aquilo aconteceria. Eu estava tão nervosa e assustada na noite de Sábado que era mais do que óbvio que Kalissa aproveitaria a oportunidade para me expulsar do controlo. Mas nunca me passou pela cabeça que ela me conseguisse manter presa durante cinco dias. Cinco terríveis dias em que ela podia ter transformado a minha vida num Inferno. Inspirei fundo para me controlar e depois olhei para Niza e Sophie. Elas pareciam tão calmas como sempre. Não me atrevi a acordá-las e a enfrentar as suas reacções ao que quer que Kalissa tivesse feito. Em vez disso, encaminhei-me para a casa de banho para fazer tomar duche e arranjar-me para mais um dia de aulas.
            Vi-me ao espelho. Estava igual a todos os outros dias. Nem um só aspecto se tinha alterado. E no entanto, eu tinha a esquisita sensação de que desta vez tinha sido pior, que Kalissa tinha feito muito mal.
            Quando acabei de tomar banho e de me vestir e pentear, esperei que Niza e Sophie se despachassem também.
            - Então Kiara… hoje vais tomar o pequeno-almoço com quem?
            Não entendi logo ao início a pergunta de Niza, mas um tremor no meu estômago alertou-me para o facto de ela estar a falar das acções de Kalissa.
            - Convosco, claro… como sempre.
            Sophie e Niza entreolharam-se como se achassem que eu tinha subitamente endoidecido. Oh não… o que teria Kalissa feito?!
            - É que tens tomado o pequeno-almoço com os Desportistas e as Raparigas da Claque todos os dias desde Domingo… depois almoças connosco e jantas outra vez com eles… nunca sabemos bem como vais fazer a seguir.
            O meu queixo descaiu-se de surpresa. O meu coração parou de bater por uns segundos e eu engasguei-me de tal maneira que tive de tossir para aclarar a voz.
            - Pois… - Tentei pensar rapidamente numa desculpa que me livrasse daquela situação horrorosa. - Eu já disse que…
            - Sim, sim, não queres criar rivalidades e odeias sentir-te presa a um grupo em especial, já sabemos disso. - Interrompeu-me Sophie, imitando a minha voz.
            Eu engoli em seco. Então era essa a jogada da Kalissa. Ela queria dar a entender que eu era amiga de toda a gente. Pois. Mas eu sabia que tinha de haver um mau plano por detrás daquela história toda. Não estava na natureza de Kalissa ser boa para as pessoas. Ela usava-as e depois deitava-as fora quando já não precisava delas. E de certeza que o seu novo esquema diabólico envolvia os Desportistas e as Raparigas da Claque de alguma forma que eu nem queria tentar descobrir.
            - Eu tomo o pequeno-almoço com vocês hoje, se quiserem.
            Niza sorriu, os olhos cintilantes de entusiasmo. Eu nem queria acreditar que lhe estava a ocultar o meu segredo. Quando ela descobrisse iria odiar-me. E realmente, se elas soubessem poderiam proteger-se dos esquemas de Kalissa. Mas eu não me atreveria a revelar que tinha aquela demónia dentro de mim. Se fizesse isso… Sophie e Niza afastar-se-iam de mim… e eu ficaria novamente sozinha.
            - Óptimo. Então vamos? Já estou pronta. - Disse Sophie.
            Assenti com a cabeça e levantei-me, acompanhando-as para fora do quarto. Cada passo que eu dava era como se espetasse um prego no pé. De certeza que as surpresas ainda não tinham parado. Kalissa devia ter feito muito pior durante esses cinco dias e eu precisava de ver Ryan, Chris e Peter para ter a certeza.
            Quando chegámos ao salão de refeições, os três rapazes do meu grupo já estavam à nossa espera, mas os Desportistas e as Raparigas da Claque ainda não tinham chegado ao refeitório. Aproximei-me e sentei-me ao lado de Peter. Ainda tinha de falar com ele acerca do beijo da noite anterior… quer dizer, da noite de Sábado. Tinha passado demasiado tempo… agora eu já nem sabia bem o que dizer. Continuava a sentir o mesmo que naquela noite mas Peter já podia ter mudado durante o tempo em que eu estivera longe do controlo do meu corpo.
            E realmente mudara.
            - Bom-dia! - Segredou ele, todo carinhoso.
            Puxou-me para si e beijou-me intensamente. Eu fiquei tão atónita com aquilo que nem fui capaz de me mexer, enquanto o choque se alastrava a todas as células do meu corpo. À medida que os lábios de Peter se moviam docemente junto aos meus, o pânico crescia cada vez mais dentro de mim.
            Kalissa!
            Afastei-me instintivamente de Peter, a ofegar com o espanto, e ele fitou-me inquisitoriamente, como se estranhasse a minha reacção. Oh não… eu nem queria acreditar…
            - O que se passa? Sentes-te bem? - Perguntou ele.
            Não. Eu não me sentia nada bem. Enquanto fitava aqueles olhos cor de chocolate e tentava entender o que podia Kalissa ter feito para incentivar daquela maneira Peter, Chris falou. Ele estava sentado à minha frente, do outro lado da mesa, e a sua voz soou como uma bóia de salvação no meio do oceano de terror em que eu estava a afogar-me.
            - Peter, ela não se está a sentir muito bem.
            Peter afagou-me as faces ternamente e eu comecei a chorar. A chorar a sério. Como… é que… aquela cabra… se atrevia… a brincar assim… com ele?! Tive tanta raiva por Kalissa naquele momento que me apeteceu bater em mim mesma, pois tinha esperanças que ela sentisse a dor à mesma.
            - Caramba Kiara, estás mesmo a chorar?! - Peter estava agora incrédulo.
            E então, como se fosse um milagre, Ryan olhou para mim do outro lado e apercebeu-se de como eu estava. Levantou-se, contornou a mesa e aproximou-se de mim.
            - Kiara o que é que tens?
            Eu nem conseguia falar. A sensação de pânico crescia e crescia e a dor de cabeça quase me asfixiava. Mas assim que Ryan pousou a mão no meu ombro, foi como se uma descarga eléctrica me atravessasse. Os seus profundos olhos castanhos-escuros transmitiram-me uma calma quase irreal e eu agarrei-me a ela com todas as forças.
            - Desculpem… está-me a doer tanto a cabeça… - Gaguejei.
            Ryan manteve-se ao meu lado até eu ficar suficiente calma para abafar os soluços. Peter, esse, estava completamente atrapalhado face à minha reacção ao seu beijo. Niza e Sophie também estavam chocadas.
            - Eu tenho de ir até lá fora, desculpem…
            Levantei-me e preparava-me para pedir a Ryan que viesse comigo, mas Chris entretanto já se tinha levantado e aproximou-se de mim.
            - Eu vou com ela, já acabei de comer.
            Sorri timidamente, contente por ele vir comigo, e saímos rapidamente do refeitório. A presença dele não era tão apaziguadora como a de Ryan, mas consegui manter-me calma à mesma. Seguimos até ao pátio da Blackstone Private School e sentámo-nos numa das mesas de pedra, um em frente ao outro. Afaguei os meus braços pois estava um vento glacial. Mas nem o frio me fez voltar lá para dentro. Tudo era preferível a enfrentar os olhares espantados dos meus amigos.
            - Kiara… és capaz de me explicar o que aconteceu ali dentro?
            Fundi o meu olhar com o seu. Chris seria capaz de compreender? Eu precisava desesperadamente de falar com alguém. John não podia estar comigo a toda a hora e eu não queria tornar-me num fardo para ele. Não queria que ele notasse que a minha adaptação estava a ser conflituosa. Muito pelo contrário, queria dar-lhe a entender que estava a controlar melhor Kalissa, apesar de isso ser mentira. Então, excluindo John, em quem mais eu podia confiar ao ponto de contar o meu segredo?
            Os olhos de Chris, imitando as safiras mais cintilantes, continuavam cravados nos meus e tive a certeza que ele me lia os pensamentos nesse momento. Aproximou-se mais de mim.
            - Tu podes confiar em mim, Kiara. Eu não conto a ninguém se tiveres um segredo que eles não possam saber.
            Um soluço escapou-se por entre os meus lábios. Eu queria contar-lhe. Naquele momento, mais do que nunca antes, eu tive vontade de contar a Chris o que estava a acontecer, esperar que ele me apoiasse e que entendesse a trapalhada em que eu estava a cair de cabeça. Mas depois, uma vozinha no fundo da minha mente obrigou-me a ficar calada, gritando a altos berros que ainda era demasiado cedo para confiar o meu segredo mais precioso a Chris. Não que eu temesse que ele o fosse contar a alguém, pois eu sabia que se pedisse segredo Chris não falaria daquilo com ninguém mas… eu simplesmente não era capaz de o continuar a encarar depois disso.
            - Tu não poderias contá-lo a ninguém.
            Eu não podia contar o meu segredo… mas podia inventar uma desculpa que servisse para o manter iludido durante mais algum tempo. Desatei novamente a chorar, só de pensar em mentir-lhe mais ainda. Chris tinha sido fantástico comigo nessas três semanas, não merecia que eu o enganasse mais do que o necessário. Mas eu simplesmente já não aguentava mais ter de lidar com as asneiradas de Kalissa.
            - OK… eu não conto a ninguém. Prometo-te.
            Inspirei fundo e fechei os olhos. Agora, o que é que eu podia dizer-lhe? Uma desculpa suficientemente boa para justificar as minhas reacções, como se não me lembrasse de nada do que tinha feito antes…
            Uma luzinha acendeu-se dentro da minha cabeça, uma ideia estrondosa que me fez abrir repentinamente os olhos.
            - Chris… eu tenho amnésia.
            Os seus olhos arregalaram-se de espanto. Claro que ele não esperava aquilo. E eu rezei no meu íntimo para que ele não fosse começar a investigar documentos médicos para comprovar a minha tese.
            - A minha amnésia é momentânea… quer dizer, eu vou-me esquecendo de factos que já aconteceram…
            - Estás a dizer que as coisas acontecem e acordas uns dias depois e já não te lembras do que fizeste?!
            Espantava-me a facilidade com que ele entendia aquilo que eu tentava transmitir-lhe. Acenei com a cabeça e Chris pareceu ficar ainda mais impressionado. Dali a pouco os olhos saltavam-lhe das órbitas, tal era o seu estado de assombro.
            - Eu não me lembro de nada desde… a noite de Sábado. - Gaguejei, com as lágrimas a escorrer-me pela cara.
            - Não posso acreditar…
            Ele ainda estava a olhar para mim. Consegui entender que ele estava confuso, não sabia se eu estava a dizer a verdade ou não, mas uma grande parte de si queria acreditar que eu não lhe estava a mentir. Aproximei-me mais dele, tanto que os nossos corpos quase se tocavam, e falei baixinho.
            - Chris… eu não te estou a mentir… não me lembro mesmo de nada…
            Eu já chorava por mil e uma razões, tal era o meu estado de desespero: chorava por mim, pelas maldades de Kalissa, por estar a enganar Chris, por ela ter brincado com os sentimentos de Peter, por ter de esconder a minha maldição dos meus amigos, por ninguém me poder ajudar, por sentir que jamais me veria livre dela, por tudo.
            Chris limpou as lágrimas que me escorriam pela cara e tentou acalmar-me, apesar de não estar a resultar.
            - Eu confio em ti, não te preocupes. Só estou… demasiado em choque para aceitar tudo o que me disseste.
            - Pois… era por isso que eu não te queria contar…
            - Por que é que não disseste isto aos outros?! Eles devem todos estar a achar que tu enlouqueceste!
            - Pois… se calhar enlouqueci mesmo…
            - Não. Eu sei que tu não estás louca. Mas se soubesse que tens estes ataques de amnésia há mais tempo… isto explica muita coisa.
            - Como assim?
            - Bem… há vezes em que parece que tu te esqueces do que fizeste antes, que ages de uma maneira diferente, como se fosses uma pessoa nova ao acordar para um novo dia.
            Reprimi um grito mas acho que ele se apercebeu do arrepio que me subiu pela espinha. Chris era muito mais perspicaz do que eu julgara. Se eu não me controlasse melhor ele acabaria por descobrir tudo e eu tinha de evitar que isso acontecesse.         
            - Pois. É por não me lembrar do que aconteceu. Por isso… eu espantei-me quando o Peter me beijou daquela maneira…
            Surgiu uma ruga entre as sobrancelhas de Chris e os seus olhos semicerraram-se de preocupação.
            - Como é que eu te hei-de explicar… desde Domingo que tu e ele… começaram a namorar, estás a ver…
            - Eu namoro com o Peter?! - Guinchei, assustada.
            - Sim. E és uma das Raparigas da Claque, ou melhor, a nova melhor amiga da Mariah. E tens passado imenso tempo com eles. Nas aulas… o teu desempenho também não tem sido do melhor… e o teu padrinho anda um bocado preocupado contigo…
            Oh meu deus…
            - Chris, eu juro que não me lembro de nada disso…
            - Pois. É provável. Mas tens de dar um desconto ao Peter, ele está convencidíssimo que tu o adoras.
            Desviei o olhar de Chris. Como é que Kalissa tinha lata suficiente para fazer mal a tanta gente ao mesmo tempo?! O que é que ela ganhava em ser uma Rapariga da Claque? Magoar Mariah, porquê? O que é que ela ganhava em brincar com os sentimentos de Peter? Será que ela queria tanto assim um namorado?
            Não. De certeza absoluta que ela não queria nada de Peter além de magoá-lo o mais que pudesse.
            - Chris… tens de me ajudar… por favor, só tu é que sabes isto…
            Ele hesitou por uns momentos. Claro que ele queria ficar do lado do resto do seu grupo… mas se ele não estivesse do meu lado eu ficaria completamente sozinha e sem saber para onde me virar.
            - Vá lá Chris… eu preciso de ti…
            Acho que foi o bastante para o convencer. Ele tornou a olhar fixamente para mim e revirou os olhos.
            - Nem acredito que vamos esconder isto deles.
            - Por favor Chris, se eles souberem…
            - Eu acho que o melhor a fazer é contar-lhes a verdade. A sério, eles não se vão passar nem nada.
            - Mas…
            - Tens alguma ideia melhor?! A menos que queiras representar um papel e continuar a enganar o Peter, fazendo-o acreditar que ainda és namorada dele, não estou a ver o que mais possas fazer.
            Inspirei fundo. Ele tinha razão. Eu estava convencidíssima que não contaria aquilo a ninguém e agora a mentira alastraria como uma doença contagiosa por todo o meu grupo. Suspirei longamente.
            Não era só Kalissa a magoá-los. Eu também os ia ferir, quando eles soubessem que tudo aquilo era um esquema iam odiar-me tanto que nunca mais quereriam olhar para a minha cara.
            Lembrei-me da minha tia. Ela sempre tinha protegido o meu segredo com unhas e dentes. Passava pelas situações mais embaraçosas e constrangedoras para me manter a salvo, inventava mentiras e mais mentiras para que eu ficasse livre e mesmo assim… nunca era apanhada. A minha tia tinha sido a minha protectora durante toda a minha vida. Com ela eu estava sempre a salvo…
            Mas agora ela tinha morrido. E eu tinha de tomar conta de mim sozinha. Inventar as minhas próprias mentiras e manter-me a salvo. Cravei o olhar em Chris. A minha tia também sofria pelas pessoas que enganava, mas punha-me acima de qualquer outro. E eu teria de fazer o mesmo: primeiro preocupar-me em manter-me a salvo e só depois pensar nas pessoas que prejudicaria para alcançar esse objectivo.



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