domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 9


Confissões



           Entrei de cabeça erguida no salão de refeições, com Chris ao meu lado, e dirigimo-nos à mesa onde o nosso grupo estava sentado. Os olhos de Peter cravaram-se logo em mim, depois em Chris e novamente em mim, enquanto tentava entender o que é que o amigo podia ter feito para me deixar assim tão calma.     
            - Desculpa Peter.
            Sentei-me ao seu lado e olhei para Ryan, que parecia confuso e perplexo ao mesmo tempo. Niza e Sophie nem se atreviam a falar, fitando-me de olhos arregalados. Inspirei fundo e Chris sentou-se à minha frente.
            - Bem… eu tenho de pedir-vos desculpa pelo meu comportamento de há pouco… eu acho que me passei da cabeça…
            - Pois foi! Que reacção foi aquela? - Perguntou Peter, rodeando a minha cintura com o seu braço.
            Engoli em seco, sentindo o meu coração a tremer de medo. Não queria magoá-lo como Kalissa certamente faria. Já o considerava meu amigo o suficiente para querer o seu bem-estar e a sua sanidade mental.
            - Peter, preciso de falar contigo. Pode ser hoje à hora de almoço?
            - Claro.
            E antes que mais alguém pudesse perguntar-me o porquê de eu ter reagido assim, ouviu-se o toque do sino e todos os alunos presentes no refeitório se levantaram e se encaminharam para as salas de aula.
            A aula de Espanhol correu bem, e eu esforcei-me por me mostrar interessada e acompanhar a matéria que o professor explicava à turma. Ele pareceu realmente impressionado com o meu esforço. Será que Kalissa era uma aluna assim tão má?
            Depois da aula de Espanhol acabar, seguimos para Filosofia. A professora entregou os testes e eu fiquei mais descansada ao ver que tinha recebido uma boa nota. Niza e Sophie também ficaram contentes com as suas. Tentei prestar atenção à aula e ofereci-me e tudo para ir ao quadro. Irritava-me imenso que tivesse de me esforçar o triplo nas aulas para compensar os desleixes de Kalissa. Tinha de trabalhar por mim e por ela, não era justo.
            Quando tocou para a saída da aula, os membros do meu grupo dirigiram-se para o salão de refeições mas eu disse que tinha de ir a um sítio antes. Corri o mais depressa que pude até aos aposentos do meu padrinho e bati à porta.
            - Entre.
            Fiz o que ele disse e aproximei-me da sua secretária. John levantou-se automaticamente, parecendo muito espantado por me ver ali.
            - Kiara? - Perguntou, a medo.
            - Sim, sou eu.
            Ele suspirou, parecendo tremendamente aliviado.
            - John? Eu tinha mesmo de cá vir, preciso de falar consigo…
            - Claro, eu compreendo. Senta-te… como é que te sentes?
            Enquanto ele se sentava na sua grande poltrona e eu na cadeira do outro lado da sua secretária, pensei numa maneira de me desculpar por tudo o que Kalissa tinha feito mas não descobri nenhuma maneira suficientemente boa.
            - Desta vez a Kalissa apoderou-se de ti durante muito tempo.
            - Pois… eu… eu peço desculpa… não sei como deixei que isto acontecesse… eu esforço-me muito por não deixar que ela se solte, mas é quase impossível.
            - Talvez tenha acontecido alguma coisa na noite de Sábado que fez com que ela ganhasse força suficiente para te controlar durante cinco dias.
            Fixei os meus olhos nos seus. Como será que ele reagiria à verdade? Bem, eu não lhe esconderia nada. Já bastava não poder contar o meu segredo a ninguém. Pelo menos com o meu padrinho queria ser sincera.
            - John… lembra-se de eu lhe ter pedido para ir ao cinema com aquele meu amigo, no Sábado?
            Ele aquiesceu e eu continuei, controlando a voz.
            - Bem… nessa noite… o Peter beijou-me. E eu não estava nada à espera disso. E fiquei tão descontrolada e tão apavorada por ele ter entendido mal as minhas intenções que… a Kalissa conseguiu apoderar-se do controlo. E ela fez asneiras atrás de asneiras nos últimos cinco dias…
            - Pois fez. Mas tu devias ter explicado ao Peter que não gostavas dele. Não gostas, pois não?
            Suspirei, sentindo um nó a formar-se na garganta.
            - Gosto dele como amigo, só isso. Não quero o mal dele, nunca. Ao contrário da Kalissa…
            - Ela tem-lhe feito muito mal? - John estava apreensivo.
            - Ela fingiu que gostava dele e começaram a namorar.
            - Fingiu? Ela não pode mesmo gostar dele?
            Respirei fundo. Talvez ele não fosse acreditar naquilo. Mas eu tinha de lhe contar a verdade, John não fazia ideia da maldade que habitava dentro de Kalissa. Ela era o diabo em pessoa.
            - A Kalissa não tem capacidade para gostar de ninguém. - Murmurei.
            Os olhos de John adquiriram um brilho especial, aquele que qualquer detective ganharia quando colocado diante de um caso bastante complicado.
            - Mas como é que sabes isso?
            - Porque, durante estes dezasseis anos, já vi tudo o que ela é capaz de fazer, ou pelo menos assim espero. Ela não gosta de ninguém além de si própria, usa as pessoas à sua volta apenas para atingir os seus objectivos, que são na maioria terríveis. Ela não gosta nem só um pouquinho do Peter, garanto-lhe. Eu sei o que ela quer dele.
            - E o que é?
            - Ela quer brincar com ele, para depois o deitar fora, magoando-o ao ponto de ele passar a odiá-la, ou seja, a odiar-me a mim.
            - Hum… ela é pior ainda do que eu pensava…
            - Muito, acredite. Ainda não viu nem metade do que ela é capaz de fazer.
            Não era minha intenção assustar John. Eu apenas queria que ele tivesse conhecimento da pessoa com quem estávamos a lidar, saber o que podia esperar dela.
            - O que vais fazer agora?
            - Bem… tenho de explicar esta situação ao Peter, claro.
            - Vais contar-lhe sobre a Kalissa?
            - Não! Isso não. Não posso contar isto a ninguém, John. Isto é segredo absoluto, entende?  
            - Claro. Eu também não falaria disto com ninguém. - Respondeu ele.
            - Obrigada. É muito importante para mim poder confiar em si.
            Os seus olhos adquiriram um ar paternal.
            - Tu podes contar comigo, Kiara. Seja em que ocasião for. Eu estou aqui para te ajudar a lutar contra ela.
            - Obrigada.
            - Mas há mais alguém desconfiado disto? - Perguntou, desconfiado.
            - O Chris, outro dos meus amigos. Chris Westifeld, da turma de Línguas e Humanidades.
            - Ah sim, já estou a ver quem é. Mas tu contaste-lhe algo?
            - Eu menti-lhe. Não me orgulho disso. Mas tinha de inventar alguma desculpa para que ele não ficasse demasiado curioso ao ponto de tentar entender na realidade o que se passa comigo.
            - O que foi que lhe disseste?        
            - Disse que tinha amnésia de tempos a tempos.
            John pensou durante momentos na minha resposta e depois um sorriso formou-se nos seus lábios.
            - E ele acreditou em ti?     
            - Sim. Ou pelo menos eu assim espero.
            - Vou dizer-te uma coisa, Kiara. A Kalissa tem um jeito muito especial para mentir e para esconder os seus sentimentos. Ela sabe enganar qualquer pessoa. Tu também tens esse jeito de conseguires mentir na perfeição, mas felizmente só o usas para o bem. Se algum dia te passasse pela cabeça tornares-te na Kalissa a tempo inteiro… não terias dificuldade nenhuma em levar as pessoas a acreditar em tudo o que dissesses.
            Os meus olhos arregalaram-se de espanto.
            - Eu nunca farei isso! Eu odeio-a com todas as minhas forças, jamais ficaria ou pensaria da maneira que ela faz!
            - Ainda bem. Eu queria apenas alterar-te para o facto de ela saber mentir muito bem. É por isso que conseguiu enganar toda a gente aqui dentro. Não apenas o Peter, mas também os Desportistas e as Raparigas da Claque. Todos.
            - O que é que ela lhes fez? - Perguntei, com medo do que ia ouvir.
            - Não posso dizer-te muito… mas tenho estado atento aos seus passos. Ao que parece ela está interessada em fazer parte do grupo da Mariah Andrews. Tem treinado com elas e assistido à maioria dos jogos dos Desportistas. Tem comido com eles na maioria das vezes e toda a gente parece gostar dela.
            Baixei o olhar e suspirei. Desta vez ela estava a planear tudo ao pormenor, calculando cada passo que tomava com imenso cuidado.
            - Eu não sei o que mais posso fazer para a controlar.
            - Tu já te esforças muito, Kiara. Nunca me passaria pela cabeça pedir-te para fazeres mais do que aquilo que já fazes, e acredita que já é muito.
            - É que… tudo o que eu tento construir ela acaba por destruir logo a seguir… é tão frustrante…
            - Eu entendo. E o meu maior medo neste momento é que as outras pessoas comecem a desconfiar do segredo. - Murmurou, com a ruga entre as sobrancelhas mais firme que antes.
            - Por que é que diz isso?
            - Bem, os professores notaram a vossa mudança. Dizem que de repente tu pareces muito menos interessada na escola e que destabilizas a turma. Eu não sei o que lhes dizer para te ajudar.
            Uni as mãos debaixo da mesa, tentando acalmar-me. Kalissa ia acabar por fazer com que toda a gente começasse a desconfiar. O que é que ela ganhava com isso?          
            - Bem… diga-lhes apenas que eu já voltei. E prometo-lhe John, vou esforçar-me ao máximo por não deixar que ela se solte. Prometo.
            - Eu sei e confio no teu esforço. Agora podes ir, não quero que fiques sem almoçar por minha causa.
            - Obrigada. E… estou contente por poder contar consigo.
            Foi a imagem do seu sorriso generoso que guardei na minha cabeça durante todo o caminho desde os seus aposentos até ao salão de refeições. Quando me sentei na mesa habitual, ao lado de Niza, não vi Peter em lado nenhum e senti-me apreensiva.
            - Onde é que está o Peter? - Perguntei.
            - Lá fora à tua espera. Ele comeu depressa para poderem ter tempo suficiente para falar. - Alertou Sophie, levando uma colher de leite-creme à boca. O meu grupo já estava quase a acabar de comer e apenas Sophie e Ryan ainda estavam na sobremesa. Passei o olhar pelo refeitório e apercebi-me dos olhares espantados dos Desportistas e das Raparigas da Claque ao ver-me ali sentada com eles.
            Cravei o olhar em Chris. Precisava da ajuda dele.
            - Kiara? - Perguntou ele, baixinho, semicerrando os olhos de modo provocador.
            - Deseja-me sorte. - Murmurei.
            Chris sorriu de modo incentivador.
            - Boa-sorte.
            Assenti e levantei-me. Os olhos de Niza, Sophie e Ryan seguiam todos os meus movimentos com uma ansiedade intensa. Eles dariam tudo para saber o que eu ia dizer a Peter, mas primeiro tinha de falar com ele. Teria muito tempo para explicar aos meus amigos o que se passava, para lhes contar a mentira que contara a Chris.
            Saí do colégio, descendo a escadaria da entrada e passando para o pátio. Não via Peter em lado nenhum pelo que continuei a andar em frente até me ver envolvida pelas árvores frondosas da Blackstone Private School. Avancei até quase chegar ao campo de desporto, mas então vi-o, à minha direita - ou seja, mais embrenhado no pequeno bosque - com as costas apoiadas no tronco de um grande carvalho, o seu olhar cravado no meu. O meu coração bateu mais depressa. Aquela aparência dele, tão descontraída e ao mesmo tempo tão nervosa, fez-me avançar lentamente até ele, sentindo a energia a fluir pelos meus braços. Como ficaria a minha relação com ele depois de lhe contar? Nem queria mentalizar-me que ele me odiaria. Não suportaria o seu ódio nem o seu desprezo.
            O cabelo revolto de Peter agitou-se com a súbita brisa que se fez sentir e eu parei à sua frente, fixando aqueles belos olhos cor de chocolate leitoso e delicioso. Mantive o meu olhar fixo no seu, tentando arranjar coragem. Afinal de contas eu ia acabar com ele. Por que é que as tarefas difíceis ficavam sempre para mim?!
            - Peter… - Gaguejei.
            Ele estendeu a mão e alcançou a minha, puxando-me gentilmente até perto de si. Eu não neguei o forte abraço que ele me deu nem pensei em afastar-me. Fechei os olhos e inspirei o perfume dele, um daqueles perfumes caros masculinos que me deixavam aluada sempre que cheirava um deles.        
            - Tenho estado a pensar na tua reacção desta manhã e ainda não consegui arranjar nenhuma explicação. Foi algo que eu fiz?
            - Não.
            Oh boa, agora ele estava a culpabilizar-se.       
            - Não. A culpa não é de todo tua.
            - Então por que é que te afastaste daquela maneira?
            Recuei o suficiente para conseguir olhá-lo directamente nos olhos, e apercebi-me que o meu rosto ficava a escassos centímetros do seu. Era tão estranho que eu não sentisse nenhuma vontade de o beijar, nenhuma vontade de que ele me apertasse contra si. Eu só conseguia olhar para aquele belo rosto e ver o meu amigo que me odiaria dali a pouquíssimo tempo, enquanto fixava aqueles olhos só conseguia procurar desesperadamente uma maneira de o fazer perdoar-me.
            - Eu tenho de contar-te uma coisa. Mas tu vais achar que te estou a mentir.
            A minha voz saía tão fraca que fez a testa de Peter enrugar-se de preocupação, enquanto as suas mãos afagavam ternamente as minhas costas.
            - Tu não tens razões para me mentir, pois não?
            - Eu não.
            Inspirei fundo. Não podia falar de mais. Tinha de manter-me muito calma e concentrada em não mencionar Kalissa nem por um segundo apenas, ou Peter rapidamente chegaria à resposta. Ele era muito inteligente.
            - Então por que é que eu deveria pensar que me estás a mentir?
            - Não deves, nunca. Mas… o que eu te vou contar é praticamente impossível de conceber e de acreditar…
            - Eu confio em ti.
            Os meus olhos ficaram marejados de lágrimas. Se ele soubesse toda a verdade não diria aquilo. Solucei e limpei as lágrimas. Se tinha chegado a hora, era melhor que dissesse tudo rapidamente. Quanto mais depressa o corte menor a dor, sempre ouvi dizer.
            - Peter… eu tenho amnésia de vez em quando. Nunca sei quando vai acontecer e ela apaga apenas certas passagens da minha vida. É difícil de acreditar, eu sei, mas é a verdade.
            Peter olhava-me desconfiado. Eu já esperava aquilo dele. Peter era dos que gostava de tirar todas as dúvidas antes de avançar. E naquele instante a sua cabeça devia estar a estoirar de perguntas atrás de perguntas.
            - Mas… isso quer dizer…
            - Sim. Eu não me lembro de nada desde Sábado à noite. A última coisa que me lembro foi de tu… me teres beijado… de resto não consigo lembrar-me de nada até esta manhã.
            - Isso é impossível…
            - Não é não. - Comecei a sentir o nervosismo a toldar a minha voz. Talvez Peter percebesse melhor do assunto do que eu supusera. - Já me tem acontecido mais vezes.     
            - Mas por que é que não contaste a ninguém?!
            Ele estava, lentamente, a passar de estupefacto para irritado.
            - Porque… bem Peter, isto não é fácil sabes… eu achei que vocês me considerariam maluca e se afastariam de mim…
            Era fácil ver que pelo olhar de Peter era precisamente isso que ele achava de mim, e essa sensação fez um nó enorme crescer na minha garganta.
            - Não sei o que te dizer.
            - Não digas nada. - Sussurrei.
            Deitei a cabeça no seu ombro e suspirei. A parte mais complicada já tinha passado. Esperei cerca de cinco minutos até Peter tornar a envolver o meu corpo com os seus braços, embalando-me calmamente.
            - Não te lembras de… nada de nada?
            - Nada de nada.
            - Pois… então não te deves recordar que nós começámos a namorar.
            - Não. - Balbuciei, sentindo as lágrimas a quererem soltar-se dos meus olhos, enquanto tentava não começar a tremer.
            - E também não te lembras do treino que eu fiz com os Desportistas, ao qual tu estavas a assistir, e no qual te dediquei aqueles três golos, pois não?
            Abanei a cabeça em negação, porque já nem conseguia falar em condições.
            - Desculpa. - Murmurei.
            - Dá-me uns minutos. Estou a ver se me habituo à ideia.
            Abri os olhos, espantada, mas não me afastei dele.
            Então Peter não ia ficar enervado comigo? Não ia acabar comigo, nem gritar comigo, nem dizer-me que era louca e nunca mais me queria ver à frente? Não estava à espera que ele reagisse assim.
            - Peter…
            - Sim?
            - Ainda estou à espera que te zangues comigo.
            Ele riu-se, uma gargalhada triste e abafada que fez um arrepio subir-me pela espinha. Embora ele estivesse a rir eu sentia a mágoa por detrás do riso.
            - Não me vou zangar contigo, Kiara. Não tens culpa de teres esses ataques. Mas eu preciso de saber… tu gostas realmente de mim ou não?
            Respirei fundo. Afinal eu tinha-me enganado: a parte mais difícil era agora. Fixei o olhar em Peter e vi que ele estava ansioso.
            - Entende isto: eu só te vejo como amigo. Não faço a mínima ideia do que fizemos durante estes últimos cinco dias. Os meus sentimentos por ti mantêm-se os mesmos desde a noite de Sábado. Os ataques de amnésia apagam não só as memórias mas também os sentimentos que eu tiver desenvolvido por qualquer pessoa durante esse tempo. Por isso é que não me lembro de… alguma vez ter chegado a gostar de ti. E a última coisa que eu quero fazer é magoar-te mas acho que é precisamente isso que estou a fazer neste momento. Perdoa-me Peter…
            Ele estava de tal modo perplexo a olhar para mim que não fui capaz de segurar o seu olhar por mais tempo, tendo de desviar o meu.
            - Estás a dizer que a minha namorada dos últimos cinco dias de repente acorda e não se lembra de alguma vez ter gostado de mim e está a acabar comigo e ainda por cima não me quer magoar e para piorar ainda mais um bocadinho pede-me que a desculpe?!
            Não havia raiva na sua voz, apenas espanto, assombro.
            - Sim, acho que é isso que estou a pedir.
            - Kiara… não sei o que dizer… ainda me estou a habituar…
            - Ouve, eu sei que neste momento me achas a pior pessoa do mundo mas eu nunca quis magoar-te! Eu adoro-te Peter, como meu amigo. Sabes, eu nunca tive amigos durante toda a minha vida. - Os seus olhos arregalaram-se de espanto. - Sempre fui reservada e tímida e nunca confiei em ninguém além… - Hesitei por momentos, enquanto sentia as lágrimas a querer soltar-se por me ter lembrado dos meus tios. - Nunca tive nenhum amigo, rapaz ou rapariga, da minha idade com o qual pudesse falar de qualquer assunto. E agora, de repente, entro para este castelo e sou acolhida num grupo fantástico. Mas… parece que só cometo erros atrás de erros e só sei magoar os meus novos amigos…
            Agora estava a chorar a sério. Não sabia o que fazer a seguir. Peter continuava a olhar fixamente para mim como se tentasse decidir se havia de me abraçar ou não.
            - Talvez só faças isso por seres inexperiente em termos de amizades.
            - Pois… talvez seja… mas por mais que me esforce, cometo sempre demasiados erros, demasiados.
            - Tem calma. Eu não te odeio nem a Niza, a Sophie, o Ryan ou o Chris. Gostamos de ti, a sério, és uma miúda porreira. E eu gosto muito de ti, podes acreditar.
            - Eu sei. E se eu pudesse escolher por quem é que me apaixonaria, escolher-te-ia Peter… mas não tenho esse poder.
            - Ninguém tem.
            Então ele tornou a puxar-me para os seus braços, apertando-me com força, mas não uma força violenta. Era uma força boa, que me espantou por conseguir gostar tanto dela. Rodeei a cintura dele com os meus braços e enterrei a cara na curva do seu ombro com o seu pescoço, e fechei os olhos. Pela primeira vez, soube-me verdadeiramente bem estar nos seus braços fortes.
            - Isto vai ser estranho daqui em diante. - Suspirou Peter, a sua respiração quente a incidir nos meus cabelos.
            - Pois vai.
            - Não sei como vou conseguir resistir a beijar-te quando te vir… e sei que não queres isso.
            - Lamento. A sério. Eu não quero que me beijes porque não gosto o suficiente de ti para andar contigo e não quero iludir-te nem enganar-te. Desculpa.
            - Eu já consegui entender as tuas intenções, está descansada.
            Depois sorriu e agarrou o meu rosto entre as suas mãos quentes, fundindo o meu olhar com o seu.
            - Mas posso dar-te um último beijo? Tenho direito a isso?
            Eu engoli em seco. Não queria dar-lhe esperanças. Mas como eu não disse logo que não, ele entendeu isso como uma permissão e inclinou o rosto até os seus lábios tocarem nos meus.
            Não senti nenhuma faísca que me percorresse pela espinha acima, não senti as borboletas no estômago, nem vontade de o apertar contra mim, de fundir o meu corpo ao seu. Simplesmente senti os meus lábios a ganharem vida debaixo dos seus. Já que aquele era o nosso último beijo, ao menos eu podia dar a Peter aquilo a que tinha direito. Rodeei o seu pescoço com os meus braços e entreabri os lábios para que ele me beijasse com maior à-vontade. Ele apertou-me contra o seu peito forte e por uns momentos ficámos assim, juntos, sem que eu conseguisse pensar em mais nada a não ser nele.
            Depois recuei lentamente, sem ser muito brusca para ele, e Peter ficou a olhar para mim, um brilho de alegria a iluminar aqueles olhos cor de chocolate.
            - Tu beijas bem, mesmo para quem não tem prática nenhuma.
            Corei imenso, sentindo as maçãs do rosto a queimar.
            - Este foi o último. - Murmurei.
            - Como queiras.
            Depois, como se a situação já não fosse estranha o suficiente, o meu estômago rugiu de fome e eu curvei-me sobre mim mesma. Peter soltou uma gargalhada alegre.
            - Anda lá, tens de ir comer.
            - Por acaso estou a morrer de fome…
            - Eu sei, vamos.
            Passou o braço em volta da minha cintura e levou-me consigo até ao refeitório, mas já não havia nada de amoroso naquele abraço, era apenas um toque de um amigo que queria o meu bem. Apesar da fome enorme, consegui sentir-me mais ou menos feliz nesse momento.
            Tinha corrido melhor do que eu imaginara.

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