sábado, 2 de outubro de 2010





Capítulo 1



Ataque



             Abri os olhos e inspirei fundo. Depois virei-me de lado na cama e enrolei-me numa bola, aninhando-me bem nos cobertores. Só esperava, no mais fundo do meu ser, que não tivesse feito nada de mal. Queria que esse dia corresse bem. Suspirei de alívio. Era tão bom quando podíamos ser nós a tomar as decisões!
            Destapei-me e pus-me de pé. O quarto estava mergulhado numa escuridão acolhedora mas de certeza que o dia já ia a meio. Aproximei-me da janela e afastei os espessos cortinados púrpura para que a luz pudesse iluminar o meu refúgio. O céu não tinha uma só nuvem e apresentava um forte tom vermelho alaranjado enquanto o sol se punha no horizonte. Sorri. Um crepúsculo tão belo que podia ali ficar a vê-lo para sempre. Não me lembrava das horas a que adormecera na noite anterior. Mas era óptimo estar em casa.
            Virei-me e peguei no robe de seda negro que tinha na cadeira em frente à minha secretária. Vesti-o e penteei rapidamente o cabelo antes de abrir a porta do quarto e sair.
            O corredor apertado dos quartos estava silencioso. Fechei os olhos, apurando o sentido de audição, mas não detectei nenhum som. Os meus tios podiam ter saído de casa. Depois atravessei o corredor, que era tão estreito que só permitia a passagem de duas pessoas lado a lado, e cheguei às escadas de madeira, que desciam em caracol até uma pequena saleta de entrada, cujas paredes tinham um bonito tom de castanho-claro e o chão e o tecto em madeira. Atravessei a saleta e abri a porta do lado direito, que dava acesso à sala de estar, e daí para a cozinha. O meu estômago contraiu-se de fome e pousei a mão sobre ele. Precisava de comer qualquer coisa, nem que fosse só uma peça de fruta. Já seria um começo. Cheguei à cozinha e abri o frigorífico, deitando uma olhadela ao interior. Não me apetecia mesmo nada cozinhar nem procurar mais nada, por isso tirei uma maçã da fruteira e trinquei-a. Depois fui recostar-me num dos sofás da sala, no mais largo e mais confortável, e comi calmamente a maçã. Peguei no comando e liguei a televisão, que ficava mesmo em frente ao sofá onde eu estava deitada. Estava a passar uma série policial que eu soube logo ser o CSI Miami e fiquei a ver, enquanto esperava que o tempo passasse e os meus tios voltassem para casa.
            O tempo foi passando e eu acabei por subir e ir arrumar o meu quarto. Quando estava a voltar para baixo, a minha tia entrou em casa e sorriu-me.
            - Olá! Já acordaste há muito tempo?
            - Há um bocado… tenho estado entretida. - Murmurei.
            Aproximei-me para a beijar no rosto. A minha tia era fisicamente muito diferente de mim. Tinha o cabelo escuro e encaracolado a dar-lhe pelos ombros, os olhos castanhos-escuros e sardas no rosto. A sua pele e a minha eram as únicas parecenças: eram ambas claras, mas não ao exagero.
            - Vou fazer o jantar. Tens fome?
            - Estive a comer uma maçã… mas pode ser, eu vou contigo.
            Segui com ela para a cozinha e sentei-me em cima do largo balcão de pedra que separava a cozinha da sala de estar. Aquele era o local onde eu me costumava sentar enquanto a minha tia cozinhava.
            - Onde foste? - Perguntei.
            - Visitar uma amiga minha que precisava de desabafar…
            - E o tio?
            - Teve de ir ao banco urgentemente, acho que houve lá um problema qualquer com as contas e ele teve de o ir resolver, já sabes como é.
            - Pois, já desconfiava.
            O meu tio trabalhava no banco ali perto. A minha tia passava os dias no seu salão de cabeleireiro. Eu costumava dividir o meu tempo entre casa e escola. Mas naquele Sábado tinha ficado em casa porque não fazia a mínima ideia de onde estivera na noite anterior. Quando me lembrei disso, tossi para aclarar a voz que de repente ficara embargada e olhei para a minha tia, que cortava as cenouras em bocadinhos pequeninos.
            - Tia…
            Ela levantou o olhar caloroso para o fixar no meu e entendeu logo o que me atormentava. Era muito fácil para ela descobrir aquilo em que eu estava a pensar.
            - Não sei Kiara. Já tinha adormecido quando tu chegaste.
            - Hum…
            Não me lembrei de nada melhor para dizer e baixei o olhar para os pés que balançavam no vazio. Se eu ao menos pudesse arranjar uma maneira de controlar aquilo…
            - Não te preocupes, acho que não fizeste nada de mal desta vez.
            - Mas podia ter feito.
            - Não tens culpa!
            Por mais vezes que ela me dissesse aquilo eu continuaria a achar que tinha culpa. Suspirei e passei a mão pelo cabelo, colocando umas madeixas do mesmo atrás da orelha.
            - Tia… eu peço desculpa. Não sei o que ela fez mas de certeza que não foi bom.
            A minha tia aproximou-se e segurou o meu rosto entre as suas mãos, sorrindo adoravelmente com os olhos a brilhar imenso.
            - Eu jamais te culparia por algo que ela fizesse. E o teu tio também não o faria, nunca. Não te preocupes, vamos proteger-te de tudo o que aconteça.
            - Obrigada.
            Ela recuou e continuou a cozinhar. Fui pôr a mesa e depois procurei uma maneira de me poder escapar até à sala. Precisava de ficar sozinha por uns segundos.
            - Vai lá. O teu tio já não demora.
            Sorri, agradecida por ela ter aquele sentido de percepção fantástico, e corri até ao sofá da sala. Sentei-me lá e voltei a fixar a atenção no filme que passava na televisão.
            Passados cerca de vinte minutos, a minha tia chamou-me para ir jantar. Estranhou-me que fôssemos comer sem o meu tio ter chegado mas nem cheguei a perguntar nada. Provavelmente o problema no banco ia demorar a ser resolvido e não podíamos esperar até muito tarde para comermos. Porém, no preciso momento em que eu cheguei à mesa da cozinha, a electricidade faltou e a escuridão envolveu-nos. A minha tia soltou uma exclamação de espanto e eu tacteei a parede até conseguir alcançar o balcão e passar para o outro lado, onde ela estava. Pousei as mãos nos seus ombros e tentei acalmá-la.
            - Onde é que estão as velas, tia? - Perguntei.
            - Na gaveta do móvel da entrada… vais lá buscar uma? O isqueiro também lá está.
            - OK, fique aqui que eu não demoro nada.
            E continuei a percorrer o caminho até chegar à saleta de entrada. Como a noite já tinha caído no exterior, a escuridão era total e eu sentia uma necessidade enorme de ver o que me rodeava e não conseguia. Nunca gostei daqueles cortes de energia e de perder o sentido da visão.
            Ao fim de uns minutos consegui alcançar o móvel de madeira que estava encostado à parede adjacente à porta principal. Tacteei o seu topo e encontrei finalmente o puxador da gaveta. Conseguia ouvir o meu coração a bater aceleradamente pois o silêncio que me rodeava não me permitia entender como estava a minha tia, na cozinha. Abri a gaveta e consegui pegar no isqueiro.
            Um grito horrorizado fez-me dar um salto com o susto. Era a minha tia que estava a gritar. Foi como um choque eléctrico que me atravessasse o corpo e me fizesse entender que ambas corríamos perigo. Em nenhuma outra situação da minha vida eu agira daquela maneira, tão ansiosa, tão desejosa de escapar. Eu não sabia o que se passava com a minha tia mas sabia que tinha de fugir custasse o que custasse.
            Meti rapidamente o isqueiro e a vela presos entre o cós das minhas calças de pijama e virei-me, tentando não fazer barulho enquanto contornava a porta e entrava na sala de estar.
            Havia uma lanterna apontada ao chão. Não consegui ver o rosto de quem a segurava, mas podia ver que o indivíduo era alto e corpulento. No entanto não consegui concentrar-me nele porque a luz da lanterna iluminava a minha tia, que estava caída no chão, com o pescoço a sangrar abundantemente.
            O meu coração falhou duas batidas e o meu instinto de auto protecção disparou completamente. Recuei uns passos, sempre a tremer como varas verdes, enquanto a minha cabeça dava voltas e voltas na tentativa de descobrir uma maneira de escapar. O que podia eu fazer? Nem consegui pensar que a minha tia tivesse sido morta. A única coisa que me interessava era fugir para não ser morta também.
            Consegui alcançar as escadas e comecei a subi-las devagar de mais para o que a minha consciência ordenava. Mas eu não podia fazer barulho. O que teria acontecido?! Como é que aquele homem tinha entrado na nossa casa e morto a minha tia?!
            Ah sim: a janela da cozinha.
            Mas estranho era o facto de eu não ter ouvido o vidro a partir. Cheguei ao piso superior da casa e tentei acalmar as respirações ofegantes enquanto tacteava as paredes. Finalmente, consegui alcançar a porta do meu quarto. Entrei e fechei-a devagar sem produzir qualquer ruído. Depois coloquei as costas de encontra a porta e fechei os olhos.
            Lá em baixo, havia pelo menos duas pessoas a andar apressadamente. Pareciam não ter percebido que eu estava ali. Estavam a abrir e fechar gavetas e portas, pelo que consegui perceber.
            Tinha de fugir. Arranjar uma maneira de escapar era a minha prioridade naquele momento.
            - Kalissa não te soltes agora, por favor… - Balbuciei, de olhos fechados.
            Isso ia tornar tudo pior. Tinha de me concentrar para não deixar que isso acontecesse agora. Tinha de me manter viva.
            Subitamente, a voz assustada do meu tio chegou-me aos ouvidos. Ele entrou em casa e começou a gritar com os assassinos da minha tia. No meio da confusão de gritos e vozes alvoraçadas, ouviu-se um tiro e um lamento de agonia. O meu próprio coração pareceu parar por uns instantes.
            Oh não…
            O meu tio também tinha sido apanhado. Provavelmente aquele tipo tinha-o morto. As minhas pernas pareciam ter paralisado, impedindo-me de fugir. Mas eu tinha de ser mais forte. Depois voltaria e tentaria descobrir quem eram aqueles homens, mas agora precisava mesmo de ir embora.
            Apelando a toda a minha coragem e tentando não desatar a chorar num pranto altíssimo, aproximei-me da janela e abri-a de par em par. Olhei para o portão de entrada e vi lá o carro do meu tio parado. Abanei a cabeça em negação, mas o pânico dentro de mim foi mais forte.
            OK, só tenho dezasseis anos. É suposto saber conduzir? Claro que não. Mas o meu tio dera-me algumas aulas só por brincadeira e eu conseguira aprender o básico sobre condução. Agora precisava urgentemente de pôr esses conhecimentos em prática.
            O parapeito da minha janela era bastante largo, mas ao olhar lá para baixo, um soluço escapou-se dos meus lábios. Era uma altura enorme. Se eu caísse morria, de certeza. Mas ouvi passos no andar de baixo e não tive tempo para pensar numa alternativa melhor. Pus-me de pé em cima do parapeito da janela e apoiei-me na portada para conseguir subir. O telhado da casa dos meus tios era inclinado, em forma de triângulo, e as telhas ajudaram-me a escalar. O meu coração batia muito depressa e a visão estava toldada pelas lágrimas, mas eu sabia que tinha de sobreviver. Fiz força nos braços para me levantar e esperneei por uns segundos, tentando arranjar maneira de alcançar o telhado. Não foi fácil, mas quando me consegui apoiar nele foi mais fácil virar-me para fechar a janela. Não podia deixar provas de que fugira por ali, pois os assassinos viriam atrás de mim pelo telhado e eu não teria hipótese de fugir. Quando consegui finalmente fechar a janela, sem fazer barulho, inspirei fundo - o ar da noite estava tão frio que me fustigava o rosto e magoava os olhos, fazendo-me chorar mais ainda - e apelei a todas as minhas forças para conseguir subir. Com muito custo, consegui galgar pelo telhado acima, enquanto tentava não visualizar a imagem da minha tia caída no chão com o pescoço cortado.
            Quando cheguei perto da chaminé, encolhi-me lá, com as costas junto da parede, e tentei acalmar a respiração. As minhas mãos e braços tremiam tanto que eu quase não tinha controlo neles.
            De repente, vi as luzes do carro do meu tio acenderem-se. Esforcei-me por me torcer e olhar lá para baixo sem que me vissem. Felizmente, a parede da chaminé dava-me invisibilidade. Observei os assaltantes/assassinos a entrarem para o carro do meu tio, a ligá-lo e a seguirem pela rua fora a alta velocidade.
            Quando eles desapareceram do meu campo de visão, não consegui suspirar de alívio. Muito pelo contrário, estava tão em pânico que não fui capaz de me mexer, nem sequer de parar de tremer. Sentia o mundo a andar à roda e a cabeça doía imenso. Inspirei fundo outra vez e sentei-me melhor, apoiando a cabeça nos joelhos para me acalmar.
            O que é que eu havia de fazer?
            Os meus tios estavam mortos lá dentro. Provavelmente os assassinos tinham levado o dinheiro deles. Mas eu nem me quis preocupar com o dinheiro naquele momento. O que mais me interessava era que os meus tios, a minha única família, tinham sido mortos. Tal como eu também podia ter sido, se os meus reflexos em situações de pânico não fossem tão rápidos. Enchendo-me de coragem, comecei a descer do telhado, sempre com o medo que ainda estivesse algum assassino lá dentro para me caçar. Mas não, eles eram apenas dois pelo que eu conseguira perceber.
            Esses dois tinham de conhecer os meus tios e saber onde eles moravam. Só assim poderiam cortar a electricidade e entrar pela janela da cozinha sem causar qualquer alarido. Como fui estúpida por deixar a minha tia sozinha na cozinha…
            Alcancei a minha janela e usei todas as minhas forças para baixar a cabeça e olhar para dentro do quarto. Quis gritar mas controlei-me o suficiente.
            O vidro da janela estava sujo de sangue.
            Endireitei-me outra vez, recuando pelo telhado acima, enquanto o meu coração batia apressadamente. Depois curvei-me sobre mim e vomitei violentamente. Nem conseguia pensar em condições.
            Quando o ataque de vómitos e soluços passou, reaproximei-me da janela e empurrei-a para que esta se abrisse. Felizmente, não a tinham fechado. O vidro, onde as marcas das mãos ensanguentadas estavam muito nítidas, cedeu facilmente ao meu empurrão e afastou-se, dando-me possibilidade de entrar em casa.
            Apurei o sentido de audição. Estava tudo silencioso. Esperei uns minutos, tentando captar alguma respiração, alguns passos, mas não ouvi nada. Caminhei lentamente, atravessando o quarto, e alcancei a porta. Não conseguia preparar-me mentalmente para aquilo que ia encontrar. Só sabia que haveria sangue, que os meus tios estavam mortos e que eu nada podia fazer por eles.
            Desci as escadas em caracol sem pressas. Aquela sensação de pânico estava a ser substituída pela de desespero. O que fazia eu agora? Para onde ia, que destino dava aos corpos dos meus tios?
            Quando cheguei à sala de estar, vi o cadáver do meu tio caído sobre o tapete que se encontrava junto ao meio círculo dos sofás. O meu tio tinha os olhos abertos e pareciam olhar para mim e contive um ataque de berros histéricos. O seu peito tinha sido perfurado pela bala e sangrava abundantemente. Tentei parar de tremer enquanto me aproximava do corpo da minha tia. O seu pescoço tinha sido cortado, possivelmente por uma faca, e uma grande poça de sangue formara-se em torno da cabeça, pescoço e ombros dela. Deixei-me cair de joelhos ao seu lado e deixei que as lágrimas se libertassem dos meus olhos.
            Os meus tios estavam mortos…
            Movi a mão até alcançar o rosto da minha tia e acariciei-a na bochecha. Tanto que eu dava para que ela voltasse… o que faria sem ela para me ajudar? Criara-me desde que nascera, fora uma verdadeira mãe para mim… como podia agora abandoná-la?
            Depois, vi algo que me prendeu ainda mais a atenção.
            Em cima do balcão da cozinha, espetado na faca com que a minha tia cortara a cenoura - e que estava cheia do sangue dela - estava uma folha de papel que se agitava com o vento forte que entrava pela janela da cozinha. Levantei-me a custo e aproximei-me da faca sinistra, tirando a folha de papel de lá, e engoli em seco antes de começar a ler.

Voltaremos para te buscar, Kiara Williams. Em breve estarás junto aos teus pais e aos teus tios. Muito em breve.

            Cambaleei para trás, sentindo um novo ataque de pânico a querer soltar-se. Apoiei-me no balcão da cozinha e fechei os olhos, canalizando as minhas forças para os braços e para as pernas e tentando que estes parassem de tremer convulsivamente.
            Eu tinha de fugir.
            Essa ideia tornou-se tão forte na minha cabeça que não consegui sequer pensar no que havia de fazer com os meus tios. Já não havia nada que eu pudesse fazer por eles. Ficar com eles ali ou não ficar daria no mesmo. Por isso comecei a pensar no que podia fazer.
            Eu não tinha para onde ir.
            Não sei conduzir (e agora já nem tinha carro para escapar), não sou maior de idade, não conheço mais nenhum familiar vivo nem tenho casa em mais lado nenhum. O meu lar era aquele, que eu teria de abandonar tão depressa. Mas talvez se fugisse… se andasse à deriva… arranjasse um lugar onde ficar.
            Dinheiro. Eu precisava de dinheiro.
            Virei-me e passei por cima do corpo da minha tia e do meu tio, correndo escadas acima até ao meu quarto. Tremia por todos os lados com a ansiedade e o terror a consumirem-me. As minhas mãos estavam cheias de sangue mas eu tentei nem ligar a esse facto. Fui ao meu roupeiro e abri-o rapidamente. Baixei-me e abri a única gaveta do armário, tirando de lá duas mochilas bastante grandes que eu costumava usar quando ia em viagem. Mandei-as para cima da cama e comecei a tirar do roupeiro as camisolas e as calças mais práticas, enfiando-as à pressa nas mochilas, sem sequer me importar se ficavam amarrotadas ou não. Quando enchi as duas mochilas corri até ao quarto dos meus tios e fui buscar as outras duas deles, onde sabia que as poderia encontrar. Desci com as quatro mochilas até à cozinha e dirigi-me ao frigorífico, começando a encher a terceira mochila com a comida mais conservável que ali tínhamos: enlatados, pacotes e fruta, muitas maçãs e laranjas e pêras. Ainda consegui arranjar espaço para enfiar lá dentro uma garrafa de um litro de água fresca. Depois corri até ao corpo do meu tio e - tentando não pensar no quão horrível era aquilo que me preparava para fazer - comecei a mexer nos bolsos dele à procura de alguma coisa. Nada. Será que os assassinos tinham levado a sua carteira?!
            Senão estava nos bolsos do meu tio, estava no quarto.
            Corri escadas acima outra vez até ao quarto deles e comecei a remexer nas gavetas das mesas-de-cabeceira dos meus tios. Encontrei algumas jóias da minha tia que de nada valiam naquela situação, medicamentos, e finalmente, aquilo que eu queria: a carteira do meu tio, ao lado do cofrezinho que mais se assemelhava a um mealheiro. Felizmente aquele era fácil de abrir, embora eu nunca tivesse feito aquilo antes. Acertei logo na combinação (era a minha data de nascimento) e abri o cofre. Os quatro maços grossos de notas que encontrei lá dentro fizeram-me sentir mais calma. Fechei o cofre e abri a carteira. O meu tio devia ter-se esquecido dela em casa, felizmente. Estavam lá todos os seus cartões de crédito, BI e outros documentos, incluindo os da sua viatura que agora tinha sido roubada. Corri com a carteira e o cofre até à cozinha onde tinha deixado as mochilas, e enfiei-o na mais pequena que era aquela que ainda estava vazia. Durante todo esse tempo, chorei sem parar, tentando movimentar-me pela casa às escuras, tacteando o que se encontrava à minha volta para seguir caminho. Fui buscar as duas lanternas ao móvel de entrada da saleta e enfiei-as na quarta mochila, juntamente com duas embalagens de pilhas. Depois virei-me para os corpos dos meus tios e mordi o lábio inferior para controlar os soluços.
            Não podia fazer mais nada.
            Fui buscar as minhas chaves de casa e deitei um último olhar ao rosto do meu tio, que parecia fitar-me com uma súplica. Abanei a cabeça em negação para afastar aqueles pensamentos tenebrosos e saí de casa, trancando a porta. Depois olhei à minha volta.
            A rua estava silenciosa como se nada se tivesse passado ali. Os poucos vizinhos que moravam naquela rua - eram só mais duas casas - nem sequer tinham desconfiado da tragédia dessa noite. Apelei à minha coragem para que esta não faltasse e tirei o telemóvel de uma das mochilas, chamando um táxi à pressa. Não era a melhor solução mas eu precisava de sair dali, e bem depressa.
            Quando o táxi chegou, coloquei as malas na bagageira e entrei, sentando-me nos bancos pouco confortáveis e esperando que o taxista não me fizesse muitas perguntas.
            - Para onde quer que a leve?
            Tentei pensar numa solução rápida, algum porto de abrigo, algum refúgio onde me pudesse esconder, mas a dor na minha cabeça era tão forte que eu não conseguia pensar em condições, tudo era uma nuvem muito escura e complicada.
            - Não sei. Leve-me a um lugar qualquer bem longe daqui. Vá andando, quando eu quiser sair aviso-o, está bem?
            Ele ficou espantado com o pedido mas encolheu os ombros e seguiu viagem. Eu bem podia tentar recostar-me no banco e adormecer mas não conseguia. O meu coração martelava-me no peito e sentia uma vontade louca de gritar e de chorar mas tentei deter um bom controlo sobre mim.
            Há anos e anos que eu treinava o meu auto-controlo. Nunca podia esquecer-me de contar e ponderar cada passo que dava pois bastava uma decisão mal pensada e podia ser o meu fim.
            Durante a viagem - que durou mais de meia hora - eu tentei arranjar uma solução para aquele problema. A meio do caminho, lembrei-me subitamente que podia falar com o meu padrinho. Falávamos apenas por telemóvel, na verdade nunca o tinha visto pessoalmente, mas era a única pessoa que me podia ajudar. Tirei o telemóvel do bolso e procurei o seu número na lista de contactos. Depois rezei para que ele atendesse depressa.
            - Sim?
            A sua voz parecia ensonada. Eram quase dez da noite, era natural que ele já estivesse a dormir. Aclarei a voz e tentei não parecer completamente desesperada.
            - John… sou eu, a Kiara… preciso da sua ajuda!
            Eu tratava-o sempre pelo nome próprio. O meu padrinho deve ter entendido que era algo grave pelo meu tom de voz e tossiu do outro lado, ficando à escuta.
            - O que é que aconteceu? Estás bem?
            - Não. Não estou nada bem e preciso da sua ajuda… os meus tios foram mortos…
            - Foram o quê?!
            - Foram mortos, entraram dois homens pela nossa casa adentro e mataram os meus tios… - Comecei a soluçar e a chorar e de certeza que ele não percebeu metade daquilo que eu disse. - Eu tive de fugir para não ser morta também mas eles disseram que voltavam e que me apanhavam…
            - Não pode ser…tem calma, eu ajudo-te, pára de chorar… onde é que estás?
            - Num táxi, devo estar perto do centro de Auburn … o que é que eu faço?!
            A minha voz estava tão esganiçada que eu mal me conseguia ouvir e o taxista começou a fitar-me pelo espelho retrovisor, provavelmente com medo que eu explodisse ou tivesse um ataque cardíaco.
            - Vem ter comigo ao aeroporto. Vou levar-te daí para fora. Tens os teus documentos contigo?
            - Sim, eu consegui tirar algumas coisas à pressa…
            - Ainda bem, eu não demoro nada, vamos partir o mais depressa possível, está bem? Acalma-te.
            - OK, obrigada John…
            - Não demoro nada, até já.
            E desligou. Eu recostei a cabeça no banco e deixei que as lágrimas escorressem silenciosamente pelo meu rosto.
            A minha vida tinha-se desmoronado. O meu mundo fora abaixo. Como é que eu ia viver dali em diante?!

3 comentários:

  1. tá muito fixee!!!!!!!!!!
    gostei muito amanha vou tentar continuar!
    beijinhos!!!!!!

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  2. adoreii só o 1 capítulo e já estou morrendo de curiosidade para saber o resto da história.
    Vc tem muito talento continue assim!
    Bjo Jess

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