segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Capítulo 13


Halloween


           Tinha chegado a hora.
            Eu sentia-me eléctrica, mas no bom sentindo. Entusiasmada, cheia de vontade de que a festa começasse. E não era a única a pensar dessa maneira.
            Niza estava sentada na sua cama, com o corpo enrolado na toalha de banho e Sophie sentada à frente dela, a pintar-lhe as unhas de preto para condizer com o fato que ela comprara. Eu estava sentada no parapeito da nossa janela, também com a toalha em volta do corpo, a pensar se tinha ou não tomado uma boa decisão em comprar o fato de odalisca. Não me estava bem a ver dentro daquilo e achava que ia fazer uma figura terrível, mas Sophie estava entusiasmada e dizia que correria tudo bem. Os rapazes estavam no quarto deles a vestir-se, e os restantes alunos do colégio que não estivessem a enfeitar o castelo também deviam estar a fazer isso.
            - Não seria bom irmos ajudá-los a arrumar tudo? - Perguntei.
            - Não. Tens de arranjar-te, isso é o mais importante. Está descansada, o 12º ano trata das decorações. - Disse Niza.
            Sophie deu um bom remate nas unhas de Niza e ela abanou a mão levemente para o verniz secar depressa. Sophie levantou-se e foi ao seu roupeiro buscar o saco da loja, dentro do qual tinha o seu fato de Catwoman. Olhei para o fato e contive um riso perverso.
            - Acham que o Ryan vai gostar? - Perguntou Sophie, subitamente apreensiva, olhando para mim.
            - Claro que vai.
            Saltei do parapeito e aproximei-me da minha amiga, pousando as mãos nos ombros dela.
            - Sophie Lennox, mete nessa cabeça dura que hoje vais ser a gata mais gira da festa.
            Ela riu-se e assentiu, acreditando totalmente naquilo que eu dissera.
            - Obrigada.
            - Anda, eu ajudo-te a vestir se quiseres.
            Niza também estava a colocar o seu fato de bruxa, que era constituído por um corpete sem alças que a apertava imenso na cintura fina, preto e cheio de rendas negras que pareciam teias de aranha. A saia de seda negra era justa ao corpo e tinha rachas dos lados, deixando ver as pernas de Niza, que ela enfiou em botas de salto bem alto, também pretas. No fim, não se parecia uma bruxa, mas sim algo que deixaria todos os rapazes do colégio de queixo caído.
            - Gostas do fato? - Perguntou-me, esperançada.
            - Adoro. A sério, fica-te mesmo bem. - Respondi, e estava mesmo a ser sincera.
            Ela atravessou o quarto numa volta como se estivesse a desfilar numa passerelle e Sophie bateu palmas no fim, fazendo Niza rir à gargalhada. Depois ela foi buscar as luvas pretas que enfiou até aos cotovelos e viu-se ao espelho.
            - Eu acho que até estou bem.
            - Claro que estás! Ninguém duvida disso.
            Niza sorriu. Até o cabelo dela condizia com o disfarce. Ela deu uma pirueta sobre si mesma, transformando-se por momentos num borrão preto, para depois voltar ao lugar e soltar uma gargalhada alegre.
            - Sophie, podes maquilhar-me por favor?
            - Claro, vem cá, eu trato disso.
            Tornaram a sentar-se na cama de Sophie enquanto ela ia buscar o estojo de maquilhagem - na verdade parecia ter uma loja inteira de produtos de cosmética dentro daquela mala de maquilhagem, que tinha o tamanho de uma mala normal de viagem que se levava para os aviões.
            - Credo… tanta coisa! - Ri-me.
            - Vais agradecer-me quando começar a maquilhar-te.
            Sophie pegou no lápis para os olhos e o seu rosto adquiriu a expressão de uma profissional no assunto, enquanto obrigava Niza a fechar os olhos e começava a pintá-la.
            Comecei a vestir-me enquanto esperava que Sophie ficasse livre para me maquilhar também. Fiquei com o meu conjunto de roupa interior preta, que felizmente não era nada extravagante como alguns dos conjuntos de Sophie, e coloquei o fato por cima, que era constituído por uma parte de cima ligeiramente maior que o meu soutien, em rosa-escuro, formada por duas fitas largas que se entrelaçavam em volta do meu soutien para depois se estenderem até aos braços, darem uma curta volta rodeando o fundo dos ombros e descendo para baixo, ficando soltas junto à cintura. Depois tinha uma saia que se parecia com a de Niza, mas com muitas mais rachas, deixando a maior parte das minhas pernas à mostra, em rosa-escuro e preto. O conjunto ficaria bem a qualquer modelo, mas a mim…
            - Pára com isso! Já sei que te estás a massacrar… estás linda, OK? - Insistiu Niza, com tanta convicção que eu comecei a achar que ela não estava apenas a ser simpática.
            Suspirei e sorri. Pronto. Não estava assim tão mal. Nos pés coloquei umas sandálias de salto alto, pretas. No fim coloquei o véu de seda negro junto ao rosto, tapando do nariz para baixo. Este dava a volta ao pescoço e as pontas soltas ficavam para as costas, tapando as pequenas partes do soutien que ainda se viam. Vi-me ao espelho uma última vez e ri-me. Nem parecia eu.
            - Estás um espanto. Agora anda cá que tenho de te maquilhar. - Disse Sophie, piscando-me o olho.
            Niza levantou-se e foi ver-se ao espelho, ficando espantada com o resultado.
            - Oh deus… esta sou mesmo eu?!
            - És! Eu consigo verdadeiros milagres sabes. - Riu-se Sophie.
            E era verdade: Niza estava deslumbrante. Sentei-me em frente de Sophie e fechei os olhos, desejando que ela não me desse um ar ainda mais atrevido do que aquele que eu já tinha no momento.
            - Estás muito nervosa Kiara… assim borras tudo com os nervos… descontrai, a sério.
            - Desculpa.
            - O que é que te está a deixar assim?
            - Sophie… eu não costumo andar assim com tão pouca roupa sabes…
            Ela riu-se perversamente.
            - Ficas muito bem, acho que o Chris não se ia queixar se andasses assim todos os dias.
            Engoli em seco. Não queria nada levar a conversa para aquele campo. E Niza pareceu entender logo isso, conseguindo (ainda não sei bem como) salvar-me da situação.
            - Eh Sophie, pinta-lhe mais os cantos dos olhos… sim, assim mesmo… olha tens de te vestir depressa! Falta menos de meia hora para começar a festa.
            - Oh raios, claro, claro!
            E começou a pintar mais depressa, mas eu sabia que ia ficar fantástico à mesma. Quando acabou deixou-me ir ver ao espelho. Eu fiquei sem palavras.
            Aquela não era eu.
            No dia-a-dia não costumo maquilhar-me. Não pinto os olhos nem nada disso. Mesmo sendo parecida com a Avril Lavigne nunca me pintei como ela fazia. Mas aquela não era nenhuma de nós. Era uma rapariga nova, com um ar exótico, uns olhos pintados e os lábios brilhantes. Uau…
            - Estás tão linda Kiara! - Sorriu Niza, orgulhosa.
            Eu virei-me para ela e sorri.
            - Ninguém te ofusca hoje, está descansada.
            E ficámos à espera que Sophie acabasse de vestir o fato de Catwoman.
            - Correcção: ninguém ofusca a Sophie esta noite. - Respondi.
            Niza juntou a sua gargalhada à minha. Parecia impossível, mas Sophie conseguia ficar ainda melhor dentro do fato do que a Halle Berry.
            Assim que ela acabou de se maquilhar - ficou ainda melhor no final - veio para junto de mim e de Niza em frente ao espelho de corpo inteiro e vi o nosso reflexo.
            A Niza, a Sophie e a Kiara tinham desaparecido. No nosso lugar estavam três beldades de impressionar. Ri-me.
            - Vamos lá arrasar com isto! - Disse Sophie.
            Assim que ela disse aquilo, as luzes do quarto apagaram-se de repente. Arrepiei-me porque não estava à espera mas Niza soltou uma gargalhada maléfica - ela andara a treinar toda a semana por causa das gargalhadas à bruxa que tinha de dar durante a noite, e que agora lhe saíam na perfeição - e virou-se para a porta.
            - O que foi isto? Quem é que apagou a luz? - Perguntei, nervosa.
            - Tem calma. Este é o sinal de que vai começar a festa. Anda daí, já está tudo pronto.
            Pegou na minha mão e conduziu-me até à porta. Abrimo-la e foi como se entrássemos num mundo totalmente novo.
            Desde o almoço até àquela hora, nós as três tínhamos ficado fechadas dentro do quarto, sem sequer espreitarmos para o exterior, para não estragar a surpresa. E como era o meu primeiro ano ali no colégio, não fazia ideia de como seriam os enfeites.
            O corredor estava escuro e assustadoramente sossegado. Havia teias de aranha a pender dos cantos das portas, no chão e no tecto, e ao longo do percurso, colocadas no espaço que separava as portas entre si, estavam abóboras com velas no interior e caras assustadoras. Elas eram as únicas fontes de luz no corredor, que mesmo assim não era muita. Sophie sorriu com o entusiasmo a moldar-lhe as belas feições.
            - Isto está o máximo.
            Saímos do quarto e atravessámos o corredor com cuidado onde púnhamos os pés. Se eu enfiasse o salto alto numa teia de aranha ia ser o caos… era essa a razão para eu não andar com sapatos daqueles no dia-a-dia. Ainda não pensara muito em como dançaria com aquilo calçado mas havia de arranjar uma maneira.
            Quando chegámos à escadaria que descia para o vestíbulo, tive uma visão mais abrangente. O candeeiro antigo que descia do tecto alto da divisão estava apagado e havia algo que me parecia imenso uma teia de aranha entre ele e cada extremidade das paredes, como se fizesse uma cortina no ar com um ar assombrado. O chão estava cheio de teias de aranha como no corredor, e em cada degrau de ambas as escadarias - a dos dormitórios femininos e a dos dormitórios masculinos - havia uma pequena abóbora com uma vela a iluminar o interior, além de algumas caveiras espalhadas ao acaso. As paredes do castelo tinham sido sujas com mãos sangrentas que de certeza tinham sido feitas por ketchup. Eu só esperava que nenhum aluno tivesse a infeliz ideia de começar a lamber as paredes. Bah…
            - Anda Kiara! - Chamou Niza, ao ver que eu parara a olhar para a mão sangrenta ao meu lado na parede.
            A grande porta principal estava enfeitada com aranhas, morcegos e mais imitações baratas de sangue. E havia dois guardas: dois esqueletos horrorosos com chapéus como aqueles dos guardas londrinos nas cabeças. Eu ri-me à gargalhada perante aquela visão. Era arrepiantemente divertido.
            - Estás a gostar das decorações? - Perguntou Sophie.
            - Muito, isto está o máximo.
            Elas puxaram-me consigo pelas escadas abaixo até chegarmos ao vestíbulo. O grande tapete de entrada tinha sido retirado e havia um rasto de pés em sangue pelo chão fora a formar uma espécie de caminho que nos levava ao salão de refeições. Eu senti o entusiasmo a descer-me pelos braços enquanto pensava no que ia encontrar quando abrisse a porta.
            - Estás preparada? - Perguntou Niza.
            - Sim, vamos a isto.
            Seguimos até às portas e estas abriram-se antes sequer de nós batermos nelas.
            O refeitório estava… bem, fenomenal.
            A luminosidade era fraca e provinha das centenas de abóboras espalhadas pela grande divisão, colocadas no chão ou presas nas paredes. Havia também quatro grandes caldeirões de ferro, um em cada canto da sala rectangular, e o fogo ardia no seu interior, projectando a sua luz bruxuleante pelas paredes acima. Havia sangue no chão, nas paredes e no tecto, montes de teias de aranha e vidros partidos por todo o lado. Havia morcegos a descer do tecto, aranhas por todo o lado e caveiras nas paredes. As mesas grandes onde nos sentávamos às refeições e os respectivos bancos largos tinham sido afastados para o fundo da divisão, deixando o grande espaço aberto como uma pista de dança. O pórtico mais elevado onde se encontrava a mesa dos professores estava também decorado da mesma maneira que o resto do salão, mas as cadeiras tinham desaparecido e em cima da mesa estavam três caveiras e uma grande abóbora que iluminava a região em redor. Sorri. Aquilo estava mesmo fantástico, assustador e entusiasmante ao mesmo tempo.
            O salão estava cheio de gente que dançava ao som da música, que vinha não sei bem de onde, mas que se ouvia bastante bem. Era quase impossível encontrarmos Ryan, Chris e Peter no meio de toda aquela gente. Sophie libertou a minha mão e começou a avançar em direcção ao centro da pista.
            - Divirtam-se meninas, eu vou à procura do meu par! - Riu-se ela.
            E depois deixei de a ver no meio do mar de corpos que ali se agitavam ao som da música. Niza encolheu os ombros e também começou a dançar. E eu não arranjei nada melhor para fazer senão começar a dançar também.
            A música era boa, o ambiente estava em alta e eu precisava de me divertir mesmo.
            - Onde é que estão as bebidas? - Perguntei à Niza.
            - Na mesa do fundo, estás a ver aquela ali pequenina?
            Pequenina?! Era uma mesa que daria perfeitamente para vinte pessoas, e que tinha bastantes garrafas em cima, assim como copos de cristal. Sorri e puxei Niza comigo até lá, tentando travar a multidão e desviar-me para não levar nenhuma cotovelada nem ser pisada. Quando finalmente conseguimos chegar às bebidas, peguei numa das garrafas e verti o conteúdo para dentro de um copo de cristal. O líquido era vermelho como sangue.
            - Ah, eles meteram corantes em todas as bebidas! - Riu-se Niza.
            Encheu o seu copo e depois brindou comigo e bebi tudo de uma vez.
            Vodka. Hum… não era costume meu beber aquilo, mas era mesmo bom. Niza também gostou porque encheu novamente o copo logo a seguir.
            E depois de termos bebido cinco copos daquilo as duas voltámos para o centro da pista e recomeçámos a dançar. E eu simplesmente deixei-me levar pela música. Precisava de descontrair de me distrair e de me afastar da pressão da minha vida por uma noite que fosse. Se me quisesse embebedar, embebedava e ninguém me diria nada. Fantástico.
            Niza dançava bem. Eu já desconfiava disso, mas ali deu para ver melhor. Ela mexia-se como pouca gente conseguia igualar, nem mesmo eu conseguia fazer o que ela fazia. Mas não estava com espírito para invejas.
            E continuámos a dançar durante muito tempo, com as músicas a mudar sem parar. Aquela discoteca em pleno cenário de terror estava perfeita.
            - Estás a gostar? - Perguntou Niza a certa altura.
            - Muito! A sério, isto está fantástico!
            A certa altura uma mão tocou-me na cintura descoberta e eu sobressaltei-me, mas antes que pudesse aperceber-me do que se estava a passar, já me tinham virado ao contrário. Chris fez-me ficar de frente para si e puxou-me para os seus braços, começando a dançar comigo. Ele devia ser o melhor cowboy daquela festa, de certeza absoluta.
            Ri-me e dancei mais junto a ele. Naquela noite nem queria saber de controlos para nada, e tinha direito a divertir-me por uma vez que fosse. Caramba, eu não era adulta, não tinha de estar sempre carrancuda.
            - Uau… estás mesmo fantástica Kia… - Riu-se Chris.
            Uniu as mãos às minhas e fez-me dar uma pirueta. A música mudou subitamente, para algo que se parecia mais com salsa ou tango do que outra coisa qualquer, mas mexida o suficiente para me obrigar a dançar depressa.
            - Sabes dançar isto? - Perguntou Chris, surpreendido.
            - Sei, anda daí.
            Puxei-o comigo e comecei a dançar. E Chris apanhou-lhe o jeito bem depressa. Nós acertámos um com o outro como eu não julgara que conseguíssemos fazer. Como se eu tivesse nascido para ser a sua parceira. Chris fez-me rodopiar à sua volta e eu ri-me à gargalhada.
            O ar era pesado e difícil de respirar, a música estava tão alta que eu não ouvia nada do que se dizia à minha volta, e sentia-me leve que nem uma pena, a cabeça enevoada e os olhos meio fechados, enquanto dançava colada a Chris, para trás e para a frente, de um lado para o outro, uma e outra vez…
            Ryan chegou nesse momento junto a nós, trazendo Sophie consigo, e estavam os dois mais que bêbados, mas ainda não tinham chegado ao estado decadente. Traziam dois copos de uma bebida qualquer (pareciam todas iguais) e passaram-me um e outro ao Chris. Brindámos todos e depois bebemos tudo de uma vez, desatando a rir à gargalhada. Depois Chris puxou Sophie e foi dançar com ela, deixando-me com Ryan. Ele puxou-me para os seus braços e começou a rodopiar comigo, mas não era a mesma coisa. Chris era melhor dançarino que Ryan.
            - Estás a gostar da festa? - Perguntou o meu amigo.
            - Estou a adorar isto! Quem me dera que fosse assim todos os dias!
            Ele riu-se e continuámos a dançar. Depois a música mudou e Chris recuperou-me para si. Eu fiquei contente por voltar para os seus braços. Voltámos a dançar e eu fechei os olhos, deixando que ele me conduzisse, porque sentia-me demasiado exausta para os manter abertos, como se o meu corpo só funcionasse do pescoço para baixo.
            A música mudou de género outra vez. Chris riu-se junto ao meu ouvido e colocou o seu chapéu de cowboy na minha cabeça. Eu juntei a minha gargalhada à sua e coloquei os braços em volta do seu pescoço, enquanto os nossos corpos dançavam muito próximos. E então, sem que eu me desse conta do que ele ia fazer, porque estava demasiado aluada para conseguir pensar no que quer que fosse, Chris puxou o véu do meu rosto para baixo e aproximou os seus lábios dos meus.
            E eu pensei: "beija-me uma e outra vez!". O pensamento tinha uma força tal que eu sorri quando os lábios dele se uniram aos meus. E a sensação que me consumiu não se comparava nada à de beijar Peter. Os lábios de Chris desencadeavam ondas de fogo que me faziam arrepiar, nascendo uma ansiedade sem igual dentro de mim. Eu queria beijá-lo mil e uma vezes e mais umas quantas. Ele rodeou a minha cintura com os seus braços e rodopiou comigo, sem deixar de me beijar. E eu sentia-me na lua, tão bem que ainda o consegui apertar mais contra mim, derretendo-me nos seus braços como se fosse manteiga.
            Mas depois aconteceu algo. Eu estava a beijá-lo, a minha língua a roçar na sua, quando de repente comecei a deixar de ouvir a música. Não que esta estivesse a baixar de volume, porque não estava, mas a minha audição estava a diminuir, tal como o meu olfacto. Já não conseguia cheirar o perfume estonteante de Chris, e as minhas mãos começaram a deixar de conseguir tocar na sua pele de seda. Até o sabor da sua boca na minha se foi desvanecendo… como se eu estivesse a desaparecer… a ser lançada para um lugar muito, muito longe dali…


            Eu estava a ganhar força. Sentia isso. Quebrei todas as barreiras que me afastavam do poder, escalando até me conseguir agarrar a cada parte do meu corpo, e finalmente consegui que os meus sentidos voltassem. Mas era estranho… não havia muita luz à minha volta… e sentia-se um calor insuportável, o ar era quase irrespirável de tão quente… consegui captar uma música de dança a soar à minha volta… e depois senti algo junto aos meus lábios.
         Abri os olhos rapidamente e apercebi-me que estava a beijar Chris, aquele amigo de Kiara. Fiquei tão chocada que paralisei por uns instantes. O que é que se estava ali a passar? Onde é que nós estávamos? Recuei um pouco para conseguir olhar à minha volta. Aquele parecia o salão de refeições do castelo, mas estava decorado como se fosse um cenário de um filme de terror qualquer.
         Aaah… percebi logo, sem ser preciso perguntar a ninguém. Halloween. Só podia ser essa a explicação. Hoje devia ser a noite de Halloween e Kiara viera à festa.
         Depois a raiva dominou-me. Raios! Ela tinha aguentado tanto tempo! Eu já não tomava o controlo desde 18 de Outubro. Oh meu deus, mais de duas semanas que tinham passado! Rangi os dentes. Kiara havia de se arrepender por ter feito aquilo.
         Mas agora tinha de aproveitar. Afinal de contas, estávamos numa festa! Ri-me, puxei o rosto de Chris para junto do meu e beijei-o outra vez. Hum… ele até que sabia beijar… Kiara não tinha escolhido assim tão mal. Chris era ainda melhor que Peter.
         O que teria acontecido ao Peter? A santinha da Kiara tinha acabado com ele? E agora estava nos braços de Chris? Tinha-me estado a cortar todos os planos para conseguir aquilo que queria. Mas ela que não pensasse que agora ia ser como ela queria. Eu só esperava que ela não tivesse feito asneira e Mariah me tivesse tirado do cargo de Rapariga da Claque. Caso isso fosse verdade, eu arranjaria maneira de voltar.
         Continuei a dançar e a beijar Chris durante mais algum tempo, e depois afastei-me dele. Não era ele quem eu queria beijar e o meu alvo devia andar algures por ali.
         - Onde vais? - Perguntou Chris, ansioso.
         - Arejar um bocado. Estou a sentir-me tonta.
         - Queres que vá contigo?
         Ai que chato…
         - Não, eu prefiro ir sozinha, mas obrigada na mesma.
         Sorri, beijei-o rapidamente e depois comecei a furar a multidão à procura de Brand. E o que raio era aquilo que eu tinha vestido?! Um fato de odalisca? Nem parecia uma escolha da Kiara. Ela não era nada vistosa no que usava. Mas aquele fato era no mínimo… diminuto.
         Eu não encontrava Brand em lado nenhum. Mas descobri a mesa das bebidas e fiquei entretida a beber algumas enquanto os meus olhos percorriam o mar de gente em procura dele. Acabei por o encontrar, lá ao fundo, a dançar com Mariah, que estava vestida de coelhinha da Playboy. Enfim… é mesmo coisa da Mariah…
         Esperei apenas uns segundos até os olhos de Brand encontrarem os meus. Então ele sorriu-me e eu fiz-lhe sinal para que se aproximasse. Nunca me passou pela cabeça que fosse tão fácil convencê-lo. Segredou qualquer coisa ao ouvido de Mariah e depois foi passando por entre os restantes alunos, dirigindo-se a mim. Eu escondi-me atrás de uns alunos que dançavam. Não podia ser vista por Mariah, que ia logo começar a desconfiar que eu estava com Brand. E também não dava muito jeito que Chris me visse com Brand, ou ia mesmo começar a suspeitar, algo que não vinha nada a calhar.
         Brand chegou junto a mim, com aquele fato de ladrão, e sorriu-me de modo provocador.
         - Olá Brand. - Sorri.
         - Oi Kiara… tenho de dizer a verdade: estás o máximo.
         Senti-me bem com o seu elogio. Era isso mesmo que eu queria que Brand sentisse por mim.
         - Danças comigo? - Perguntou ele.  
         - Podes crer que sim.
         Pousei o copo e deixei que ele me envolvesse nos seus braços. Depois começámos a dançar.
         E durante os minutos seguintes eu não quis saber de mais nada. Limitei-me a deixar-me levar pela música e a mexer o corpo junto ao de Brand, que parecia bastante entusiasmado.
         - A festa está perfeita. - Segredei junto ao seu ouvido.
         - Não, falta uma coisa.
         Agarrou o meu queixo na sua mão quente e puxou-o para cima para me poder beijar. Eu soltei uma risadinha e enrolei os braços à volta do pescoço dele como se fossem serpentes, enquanto continuava a dançar.
         Eu tinha ganho o meu prémio nessa noite, e nem tinha sido muito difícil. Brand derretia-se às minhas vontades com uma facilidade tremenda.
         Deixei-me ficar com ele uma música, e outra, e mais outra. Mas depois lembrei-me que era suposto não me revelar, que ninguém podia saber que eu não era a Kiara, e que portanto era suposto eu agir como ela. Recuei um pouco, parando de beijar Brand.
         - Hei, toma atenção à Mariah.
         Ele revirou os olhos como se falar nela fosse desagradável, e isso agradou-me de uma maneira muito especial.
         - Ela não nos vê aqui.
         - Pois, mas não quero arranjar problemas. Já tiveste o que merecias hoje. - Sussurrei.
         Ele piscou-me o olho e puxou-me para si outra vez.
         - Quando é que dançamos outra vez?
         - Daqui a algum tempo. Agora deixa-me ir.
         Beijei-o outra vez, aproveitando ao máximo a maneira como ele me abraçava, e depois soltou-me e eu embrenhei-me novamente na multidão, enquanto procurava por Chris. Ele estava a dançar com Niza e quando me viu chegar largou-a, sorrindo.
         - Estás melhor?
         - Estou, muito melhor. - Sorri.
         Niza riu-se e foi-se embora, deixando Chris só para mim. Ele não fazia tanto o meu género como Brand, mas também servia para me divertir um bocado. Voltámos a dançar.
         E foi assim que a festa se prolongou pela madrugada dentro. Eu ia bebendo qualquer coisa quando tinha sede e depois dançava com toda a gente, mas principalmente com Chris, Ryan e Peter, e de vez em quando voltava a procurar Brand e curtia mais um bocado com ele.
         Foi a primeira noite de jeito que tive naquele castelo.
         Quando já eram perto das quatro da manhã, e eu estava a dançar com Chris, comecei a sentir-me tonta. Mas não era com vontade de vomitar era apenas… uma tontura muito forte.
         Ah, não!
         Tentei agarrar-me ao momento em que estava, aninhei-me nos braços de Chris e continuei a beijá-lo com toda a intensidade que consegui reunir, mas era inútil lutar contra ela. Aquela parasita estava a afastar-me do meu corpo. Rosnei, furiosa, lutando contra mim mesma, e Chris ficou espantado com o que eu fizera, mas eu já não conseguia ver nada. De repente ficou tudo muito escuro, deixei de conseguir ouvir e por mais que tentasse falar já não ouvia a minha própria voz.
         Oh raios… Kiara havia de me pagar por tudo aquilo…


         Ofeguei, enquanto me agarrava ao controlo, obrigando a parede de tijolos da minha cabeça a afastar Kalissa para longe. Ela não ia estragar-me a noite, nem pensar nisso. Chris amparou-me nos seus braços para que eu não caísse enquanto eu recuperava o meu corpo, a minha visão, a minha audição, o meu olfacto, o meu tacto, o meu paladar, o meu poder…
            - Kia, estás bem?!
            Ele estava preocupado. Tentei assentir mas sentia-me tonta porque era difícil respirar naquele ar tão quente.
            - Preciso de sair daqui. - Murmurei, fechando os olhos.
            - OK.
            Ele amparou o peso do meu corpo e levou-me consigo para fora do salão de refeições, furando a muralha de corpos até chegarmos à porta. A diferença de temperatura que se fez sentir foi tão forte que eu me arrepiei e ele abraçou-me com mais força.
            - Vamos lá para fora.
            Seguimos pela porta principal. O ar gelado da noite fez-me abraçar Chris com mais força, mantendo-me presa naqueles braços quentes e tentando que os dentes não começassem a bater. Já nem conseguia ver em condições e sentia a testa a arder. Chris levou-me para o pátio do castelo e sentou-me numa das mesas de pedra, ficando de pé à minha frente. Eu suspirei e encostei a testa ao seu peito, fechando os olhos para me acalmar. Sentia umas náuseas muito fortes.
            - O que é que tens? - Perguntou Chris, tirando-me o cabelo da cara.
            - Calor. E sede.
            - Eu vou buscar-te uma bebida, OK?
            - Sim, obrigada. - Sorri.
            E assim que o vi dobrar a esquina e começar a subir as escadas para a entrada principal, curvei-me sobre mim própria e comecei a vomitar violentamente. Sentia a cabeça a andar à roda. Vomitei durante algum tempo mas consegui não sujar a roupa. Depois suspirei e tirei o cabelo da cara. Sentia-me demasiado quente, só me apetecia tomar banho.
            Chris surgiu nesse momento com um copo de algo que se parecia imenso com sangue. Ao ver o vomitado junto aos meus pés a sua testa franziu-se de preocupação.
            - Desculpa. - Sussurrei.
            Peguei no copo que ele me estendia e bebi sofregamente, lavando o sabor do vomitado da boca. Felizmente ele tinha trazido dois e bebi o segundo também. Não sabia se aquilo era whisky ou outra coisa qualquer parecida, mas sabia muito bem.
            - Estás melhor? - Perguntou ele.
            - Sim… acho eu…
            Ele sentou-se ao meu lado e deitei a cabeça no seu ombro, fechando os olhos. A aragem fria fazia-me pele de galinha mas eu não queria sair dali.
            - Eu desmaiei há bocado? - Perguntei.
            Sentia um vazio estranho na minha cabeça, como se durante um certo tempo eu não tivesse estado a controlar o meu corpo.
            - Não. Estiveste bem durante toda a noite, dançaste com montes de gente e fartaste-te de beber… daí teres vomitado.
            Hum… então eu estava bêbeda… e ainda por cima aquela sensação horrível de que Kalissa se tinha apoderado de mim estava a fazer-se notar. Que asneiras teria ela feito dessa vez? Que caos teria causado?
            Aparentemente estava tudo bem. Arrepiei-me só de pensar que ela pudesse ter-se aproveitado de Chris, que ele a tivesse beijado. Mas não podia culpá-lo: ele continuava a achar que me estava a beijar a mim. Suspirei. Ela era mesmo cabra. O que é que eu podia fazer para proteger o meu melhor amigo?
            E como é que a minha relação com Chris ficava depois dessa noite?
            - Chris… - Sussurrei.
            Ele virou-se para mim e acariciou-me no rosto.
            - Estás demasiado quente…
            - Preciso mesmo de tomar banho… e de dormir… já não aguento dançar mais… estou tão cansada…
            - Eu sei. Eu ajudo-te, anda.
            Mas eu não tinha sequer forças para me pôr de pé. Mantinha os olhos abertos apenas até metade, e a música ainda soava dentro da minha cabeça como se ainda estivéssemos no salão de refeições. Ao ver que eu não me mexia - os meus pés latejavam imenso - Chris passou um braço pelas minhas costas e outro pelos meus joelhos e pegou-me ao colo com muito cuidado, como seu fosse uma criança, e começou a dirigir-se ao castelo. Eu fechei os olhos, envolvi o pescoço dele com os meus braços e deixei-me ficar ali deitada nos seus braços enquanto ele me levava de volta ao ar concentrado e demasiado quente.
            Subiu a escadaria que dava acesso aos dormitórios femininos comigo ao colo. A luz que vinha das abóboras era a única iluminação, e mesmo assim não servia de muito porque eu só conseguia ver manchas e mais manchas. Ainda se ouvia bastante bem a música, mas pelo menos era com menor intensidade do que se estivéssemos no refeitório.
            Chris abriu a porta do meu quarto e entrou, fechando-a logo a seguir. Eu abri finalmente os olhos, pestanejando, e vi-o a dirigir-se comigo para a casa de banho.
            - Não tenho de te ajudar a tomar banho, pois não? - Riu-se ele.
            Abanei a cabeça em negação.     
            - Sabes uma coisa? - Perguntei, baixinho.
            - O quê?
            - Adoro o som do teu riso.
            Ele riu-se e beijou-me na testa com carinho. Depois deixou-me pôr os pés no chão quando já tínhamos chegado à casa de banho. Endireitei-me, apesar de me ter sentido tonta outra vez, e Chris sorriu-me.
            - Estou lá fora à tua espera, OK?
            Assenti e beijei-o ao de leve. Depois ele saiu e eu pude começar a despir-me, embora o tenha feito lentamente. Não conseguia mexer-me mais depressa. Sentia-me tão exausta que tinha quase a certeza que adormeceria debaixo do chuveiro.
            Mas isso não aconteceu.
            Tomei banho, lavando duas vezes o cabelo com aquele champô que cheirava a chocolate, um cheiro mesmo delicioso, e depois saí da banheira e peguei na primeira toalha que vi, enrolando o corpo nela. Vi-me ao espelho. Ainda tinha ficado com pequenos vestígios da maquilhagem, porque Sophie tinha carregado tanto no lápis dos olhos que este não saíra todo com o sabão. Assim eu parecia uma zombie. Suspirei. Que se lixe.
            Depois fui para o quarto. Chris tinha afastado os espessos cortinados para o lado e a luz daquela bela lua cheia entrava pelo quarto adentro, mas a minha cama, aquela onde Chris estava deitado, permanecia nas doces sombras. Eu sorri e encaminhei-me até lá. Deitei-me ao lado de Chris, sem sequer ter paciência para vestir o pijama ou para secar o cabelo. Sentia-me ao ponto de cair para o lado a qualquer momento. Chris deixou-me deitar a cabeça no seu braço e aninhar-me junto dele e acariciou-me o ombro nu.
            - Cheiras mesmo bem, sabias?
            Sorri e fechei os olhos.
            Ainda o senti a beijar-me mais uma vez, mas depois tudo se tornou indistinto e eu adormeci, rendendo-me ao cansaço. Mas Chris ficou ali junto a mim, a beijar-me e a fazer-me festinhas no cabelo molhado.


           
           





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