sábado, 9 de outubro de 2010









Capítulo 5


Clã



           Na manhã seguinte, ao abrir os olhos, deixei-me ficar em silêncio por mais uns minutos, tentando não me mexer muito e não dar a entender que já acordara. Tentei captar aquela sensação horrível que sempre tinha quando Kalissa me invadia, tomava controlo do meu corpo e o usava em seu proveito. Mas o meu coração não se comprimia com o desespero, a cabeça não doía, as mãos não tremiam, as respirações estavam iguais e os meus pensamentos eram claros e concretos. Não havia qualquer nuvem cinzenta e nebulosa na minha mente, que sempre seguia as investidas de Kalissa para me controlar. Nada. Apenas… a mesma sensação com que adormecera na noite anterior.
            Destapei-me e olhei para a cama ao meu lado, onde Niza dormia profundamente. Ainda devia ser demasiado cedo para nos levantarmos, mas eu já não sentia sono. Atrevi-me a esticar a mão para alcançar o seu telemóvel, que estava pousado em cima da mesa-de-cabeceira - colocada entre a minha cama e a dela - e observei o relógio do telemóvel. Seis e dez da manhã. Suspirei.
            Como elas ainda estavam a dormir, eu teria tempo para me arranjar à minha vontade. Levantei-me, atravessei o quarto e entrei na casa de banho. Despi-me, tomei o meu duche matinal e depois enrolei o corpo numa das toalhas brancas, voltando para o quarto. Niza e Sophie falavam alegremente enquanto escolhiam as roupas que usariam nesse dia, cada uma em frente ao seu armário. Sorri-lhes, sentindo-me subitamente mais calma por estar com elas.
            - Olá meninas. - Murmurei.
            Niza sorriu-me alegremente, com os seus intensos olhos verdes a cintilarem para mim. Aproximei-me do meu armário, abriu-o e escolhi as calças e a camisola que usaria nesse dia. Enquanto me vestia, Sophie foi tomar banho e Niza seguiu-se-lhe. Eu sentia que aquela rotina se repetiria todos os dias que eu vivesse naquele colégio. E nem era uma rotina muito má.
            Nessa quarta-feira correu tudo bem. As aulas de Matemática e Físico-Química foram boas (os professores já estavam a passar do estado agressivo para o estado passivo), e depois de almoçar com Niza, Sophie e Ryan fomos para a Sala de Convívio e passámos a hora inteira que restava a ver um filme qualquer que passava na televisão plasma abrangida pelo conjunto de sofás onde nos sentámos, o mesmo que no dia anterior. Talvez eles tivessem mesmo escolhido aquele cantinho sossegado, que ficaria sempre nosso. Diverti-me a ver o filme e depois ouviu-se o sino e seguimos para as aulas da tarde, Biologia e Geologia, seguida de Geografia. Os professores não estavam muito bem impressionados comigo, pelo facto de Kalissa ter faltado às aulas na segunda-feira, mas acabaram por pensar que tinha sido um lapso meu, pois tentei mostrar-me sempre interessada no que eles explicavam, tentando passar uma imagem de boa estudante.
            Cheguei ao fim do dia tão cansada que só me apetecia subir até ao quarto para ir dormir. Mas algo veio contrariar esses planos.
            Quando eu acabava de sair do salão de refeições, depois do jantar, vi John aparecer lá ao fundo, e quando me viu, esboçou um sorriso convidativo. O meu padrinho tornava-se mais próximo de mim a cada novo encontro. Despedi-me de Niza, Sophie e Ryan e corri até John.
            - Olá… Kiara.
            - Sim, sou eu. - Suspirei, sorrindo.
            Ele também ficou mais descansado, mas não se voltou para me levar até aos seus aposentos como eu esperava que ele fizesse. Pelo contrário, ficou parado à minha frente, fitando-me com expectativa.
            - Passa-se alguma coisa? - Perguntei baixinho, confusa.
            - Só queria certificar-me que ainda eras tu.
            Inspirei fundo e fechei os olhos por uns momentos. Não sabia explicar bem porquê, mas aquela preocupação tão paternal que ele de repente desenvolvera por mim fazia-me recordar vivamente o meu tio, e as lembranças magoava-me e faziam-me doer o coração. John pareceu notar o meu sofrimento porque pousou uma mão no meu ombro.
            - Tens saudades dos teus tios?
            Assenti com a cabeça, não sendo capaz de falar pois naquele momento as lágrimas queriam soltar-se dos meus olhos e se eu falasse tornar-se-ia mais difícil contê-las.         
            - Estive hoje a falar com um notário de Auburn, aquele que avaliou os bens dos teus tios, e tenho uma óptima notícia para te dar.
            Levantei o olhar para ele, estupefacta. O que ainda me estaria reservado depois de tudo aquilo?
            - Agora és, não só, a dona da casa onde os teus tios moravam e onde crescente, como também de todos os seus bens materiais. A herança dos Williams está toda nas tuas mãos.
            O meu queixo deve ter-se descaído com a surpresa, e eu não fui capaz de falar.
            Os meus tios não eram assim tão ricos, mas também não tinham dificuldades financeiras, e para além da casa de Auburn ainda eram donos de uma vivenda em Recife, no Brasil. Mas a ideia de tudo aquilo me pertencer, tão de repente…
            Além de que eu não fazia tenções de voltar à casa onde eles tinham sido mortos. Nunca mais.
            - John… eu não fazia ideia…
            - Os teus tios não têm mais nenhum descendente por isso todos os seus bens ficam para ti. Neste momento, como eu já tratei de todos os documentos necessários e sou o teu tutor legal, serei eu a administrá-los até que sejas adulta, entendes?
            Assenti e depois esbocei um sorriso nervoso.
            - Obrigada por tudo…
            - Ora essa… sabes, esta situação tem pelo menos um lado bom: conseguiu aproximar-nos. Eu nunca tive possibilidades de criar um filho, Kiara… mas sempre quis ter um. E agora, olha a minha sorte! Tenho uma afilhada maravilhosa para cuidar.
            Corei e tornei a baixar o olhar. Ele até podia ter razão, mas eu não conseguia ver o lado bom do assassinato dos meus tios. Não, enquanto a dor durasse e magoasse tanto quanto fazia naquele momento.
            - Daqui a uns tempos encararás esta situação com outros olhos.
            - Sim, eu sei disso… e peço desculpa se, durante os primeiros tempos, parecer, sabe… deprimida e aterrorizada… mas a minha vida foi-me roubada tão de repente…
            E depois uma lágrima desceu pela minha cara. Aquela lágrima que eu andara todo o dia a tentar conter. Um soluço escapou-se pelos meus lábios e julgo que John me teria abraço se a maioria dos alunos que estavam presentes no vestíbulo não tivessem os olhos pregados em nós. Por isso limitou-se a afagar-me os cabelos gentilmente.
            - Tem calma Kiara. Já não corres perigo. E vais recuperar da morte deles. Os teus tios continuam a olhar por ti e não gostariam de te ver chorar dessa forma…
            - Mas eu tenho saudades deles, John… mais saudades do que podia imaginar que pudesse sentir… como se me faltasse o ar para respirar…
            E então, ignorando a plateia ansiosa, John puxou-me para os seus braços e apertou-me contra si, enquanto tentava acalmar-me e sussurrava ao meu ouvido que ficaria tudo bem. Abracei-o também, tentando abafar o choro. Aquele era o abraço que o meu tio me dava, talvez com menos emoção mas ainda assim era aquela a forma como os seus braços envolviam o meu corpo. A lembrança do seu toque foi tão forte que me fez recuar, limpando freneticamente as lágrimas com as mãos trémulas.
            - Eu vou para o quarto… tenho de me acalmar…
            O meu padrinho assentiu e eu virei-me, desatando a correr escadas acima até ao meu quarto. Fechei-me lá dentro e lancei-me para cima da minha cama, enterrando o rosto na almofada e chorando sem parar.
            As saudades só magoam porque o coração não quer apagar as lembranças.
            E eu não queria esquecer os meus tios, claro que não… mas não suportava continuar a sofrer daquela maneira durante muito mais tempo. Kalissa ainda piorava mais a situação… eu não podia deixá-la tomar o controlo nunca mais. Ela só seria capaz de piorar ainda mais a minha vida.
            Não sei quanto tempo fiquei a chorar naquela escuridão silenciosa. Até era capaz de ouvir as batidas descompassadas do meu coração. Felizmente, Niza e Sophie deviam estar com Ryan na Sala de Convívio e nem vieram ver como eu estava. Qualquer outra pessoa teria apreciado a sua companhia e desejaria apoio vindo delas, mas eu precisava de estar sozinha.
            E nessa noite de quarta-feira, chorei até as minhas lágrimas secarem. Preparei-me para enfrentar o mundo que me esperava de cabeça erguida. Tal como dissera John, os meus tios não quereriam ver-me chorá-los eternamente. Não. Eu ia recompor-me e continuar com a minha vida.
            E mais ainda: eu iria vingar a morte das pessoas que mais amava.


            Tinham-se passado cinco dias desde que eu entrara para a Blackstone Private School. Tal como eu imaginara, a rotina repetiu-se até à sexta-feira dessa minha primeira semana. Mas eu estava a mudar, ainda que lentamente. Lembrava-me menos vezes dos meus tios e conseguia estar mais atenta nas aulas. Também tentei ser mais sociável com Niza, Sophie e Ryan, participando nas conversas deles, dando opiniões e esforçando-me por os entender. As minhas colegas de dormitório estavam felizes por me ver a recuperar, eu podia ler isso nos seus rostos tão transparentes de emoções.
            Durante as horas de almoço eu ia sempre com eles para a Sala de Convívio, e nos serões de quinta-feira e sexta-feira fiz o mesmo. Víamos filmes e séries de televisão. Descobri que eles também gostavam do CSI e de séries desse género. Era óptimo ter pelo menos um ponto em comum com eles.
            Nas aulas de Educação Física continuámos a praticar basebol e eu recebia cada vez mais elogios do professor, que estava a gostar do meu desempenho. Quem não parecia gostar assim tanto da mudança era Mariah. Lançava-me sempre um olhar nervoso e superior, como se achasse que eu tentaria ocupar o seu lugar de "Líder da Claque". Não, eu não ambicionava ser nada disso. O meu principal objectivo naquele momento era manter o auto-controlo no seu auge.
            Sim, porque bastava um pequeno deslize e Kalissa soltar-se-ia.
            Eu sentia-a debaixo da minha pele, ansiosa, esperando silenciosamente a melhor altura para se apoderar do meu corpo. E por isso tinha sempre de manter-me alerta. Mas não era fácil para Kalissa tomar o controlo quando eu me mantinha calma e até feliz, se bem que não totalmente feliz. Esse sentimento fora parcialmente destruído do meu sistema e eu só voltaria a sentir felicidade quando ultrapassasse verdadeiramente a dor da morte dos meus tios. E eu temia que isso nunca chegasse a acontecer.
            Nessa noite de sexta-feira, quando eu estava deitada na minha cama, com Niza e Sophie a dormirem nas suas, algo me despertou do sono.
            O quarto estava escuro e silencioso, mas eu ia jurar que vira algo mover-se nas sombras junto à janela. Soergui-me com a ajuda dos cotovelos mas não acendi a luz. Limitei-me a fixar o olhar na porta da casa de banho, que eu ia jurar que se mexera, nem que fossem apenas uns milímetros. Depois ouvi novamente aquele som que me acordara. Parecia… uma respiração…
            Olhei para a cama de Niza. Ela dormia pacificamente. Sophie também. Mas a respiração que me perturbava não era a de nenhuma delas, nem sequer a minha. Portanto…
            Estava mais alguém no quarto.
            Levantei-me muito devagarinho e tentando não fazer barulho. Era estranho, porque eu mal sentia o peso do meu corpo. Será que o medo me fazia sentir assim tão estranha? Medo de quê, afinal? Ali dentro ninguém me podia fazer mal.
            Tacteei a parede ao meu lado, atravessando o quarto sombrio até alcançar a porta da casa de banho. Nessa altura fui capaz de ouvir o meu coração a bater muito depressa, ribombando-me nos ouvidos como um trovão enfurecido. Inspirei fundo, enchi-me de coragem e abri a porta da casa de banho.
            Do outro lado, não estava nada. A confusão instalou-se em mim. Que estranho… eu ia jurar que vira a porta a fechar-se lentamente… deitei um rápido olhar ao interior da banheira mas não estava lá nada. Encolhi os ombros, tomando noção de que fora apenas uma ilusão, e preparava-me para voltar para a cama, mas quando me virei de volta ao quarto surgiu diante de mim um homem encapuzado, alto e corpulento, que empunhava uma grande faca ensanguentada na minha direcção, com um sorriso maldoso nos lábios.
            Um grito de verdadeiro terror soltou-se de mim, enquanto eu me contorcia na cama, de um lado para o outro, suada como se tivesse corrido dez quilómetros. O homem à minha frente avançou até mim, prestes a matar-me, mas então tudo se dissolveu numa nuvem cinzenta e ameaçadora, enquanto eu continuava a gritar de medo.
            - KIARA! Acorda, está tudo bem!
            Aquela voz era como uma corda que me tinham lançado. Agarrei-me a ela, tentando fugir ao assassino e regressar à realidade. Abri os olhos, assustada e ainda a tremer como varas verdes, e deparei-me com os bondosos olhos de Sophie muito próximos dos meus. Tentei parar de tremer e de soluçar.
            - Foi só um pesadelo, calma. Estás aqui, está tudo bem. - Murmurou ela.
            Niza estava sentada ao meu lado na cama, e pegou na minha mão, conservando-a entre as suas. Inspirei fundo e apercebi-me que fora mesmo só isso, um pesadelo. Engoli a saliva que me enchia a boca e cravei o olhar em Sophie, que estava mesmo assustada.
            - Desculpem… - Balbuciei.
            Tinha sido tão real… eu conseguira ouvir, até tocar… a única coisa que me alertava para o facto de ser um pesadelo era ter acordado e de Niza e Sophie estarem ali comigo. Tentei sentar-me na cama e Niza ajudou-me nisso, tirando-me o cabelo da testa suada.
            - Pregaste-nos cá um susto! - Suspirou Niza, apercebendo-se que o meu terror estava a diminuir.
            - Desculpem… eu acho… eu não sabia… desculpem… - Gaguejei.
            - Tem calma, já passou. Não peças desculpa. Todas nós temos pesadelos de vez em quando. - Disse Sophie, sorrindo compreensivamente.
            Não. Nem todas. Muito menos elas as duas. Nem toda a gente via assassinos dentro do próprio quarto. Deixei o ar sair dos meus pulmões e depois inspirei bem fundo. Era um óptimo exercício para compassar as batidas do coração. Quando este já estava mais calmo, Niza soltou a minha mão e encarou-me de modo preocupado.
            - Achas que és capaz… de nos dizer o que acontecia no pesadelo?
            Não queria mesmo nada fazer aquilo. Nem por sombras. Mas também não sabia como lhe dar a entender isso sem as magoar. Não queria mesmo nada que Niza ou Sophie ficassem chateadas comigo…
            - Deixa-a estar Niza… ela não vai querer lembrar-se disso agora… vamos deixá-la dormir e quando se sentir melhor conta-nos. Não é, Kiara?
            Assenti e deixei que Niza se encaminhasse de volta à sua cama.
            - Se precisares de alguma coisa chama-nos. Agora tenta voltar a adormecer, está bem? Já passou. - Disse Sophie, obrigando-me a deitar.
            Suspirei e acenei-lhe com a cabeça, tentando passar a ideia de que estava bem. Sophie sorriu-me e foi-se deitar, apagando a luz do candeeiro de mesa-de-cabeceira. E apesar de passado pouco tempo as suas respirações terem acalmado - indicando-me que elas tinham adormecido - eu não consegui fazer o mesmo.
            O pesadelo não me deixou voltar a cair no sono.
            O que queria aquilo dizer? Seria um aviso? De que os assassinos dos meus tios estavam à minha procura e que mais tarde ou mais cedo me encontrariam? Eu nem queria pôr essa hipótese. Era demasiado má. Tudo o que eu menos queria era que eles me descobrissem, e muito menos ali. Não queria que eles encontrassem John, Niza, Sophie ou Ryan, que os matassem também…
            Eu não permitiria que mais alguém morresse por minha causa.
            Passadas mais ou menos quatro horas, o despertador de Niza começou aos berros em cima da mesa-de-cabeceira e ela mandou-lhe um encontrão, deitando-o ao chão. A queda fez o aparelho parar de tocar e a minha colega aninhou-se melhor nos cobertores, pronta a dormir de novo.
            Sábado. Um dia inteiro sem aulas para me ocupar a cabeça e me impedir de pensar em assassinatos, perseguições, morte e… Kalissa.
            Até me espantava que ela não tivesse aproveitado o pesadelo da noite anterior para se apoderar de mim. Fora um momento de fraqueza e ela podia muito bem ter-me empurrado para o poço negro e assumido o controlo do meu corpo. Mas não, ela deixara-se estar invisível. Essa era apenas uma das questões para as quais eu não tinha resposta.
            Deixei-me ficar deitada, de olhar pregado no tecto do quarto, durante muito tempo, até ouvir Sophie a mexer-se e a espreguiçar-se calmamente do outro lado do quarto. Olhei na sua direcção e deparei-me com aquele par de olhos cor de caramelo cravados nos meus, preocupados.
            - Bom-dia Sophie. - Sorri.
            Não queria que ela pensasse que eu ainda estava tão mal quanto na noite anterior, e muito menos que passara a madrugada inteira a pensar no pesadelo. Precisava que ela acreditasse que eu estava realmente bem para que não fizesse mais perguntas.
            - Olá. Estás… melhor?
            - Estou. - Felizmente a minha voz saiu mais determinada do que a minha consciência se encontrava naquele momento, e isso pareceu deixar Sophie mais descansada.
            Levantou-se, atravessou o quarto e aproximou-se da janela, afastando os espessos cortinados para poder observar o céu, que exibia uma bela tonalidade de azul-bebé.
            - Uau, hoje está um dia ensolarado… que tal irmos dar uma volta pelo bosque?
            Ao ouvir as suas palavras, Niza abriu os olhos e levantou-se lentamente, olhando estremunhada para mim e depois para Sophie, até os seus lábios se rasgarem num grande sorriso.
            - Uma aventura na natureza?
            - Exacto! - Cantarolou Sophie, toda contente.
            - Parece-me bem… o que achas, Kiara?
            Eu sorri, encolhendo os ombros sem me querer preocupar muito com o assunto. Se elas queriam assim tanto que eu fosse… eu não me importava muito de ir.
            - Acham que o Ryan quer vir connosco? - Perguntou Sophie, pensativa.
            - Não sei… provavelmente ele vai querer treinar com a equipa no campo… já sabes como são os rapazes. - Murmurou Niza, levantando-se.
            Sophie olhou outra vez pela janela e suspirou. De certeza que ela preferiria que Ryan viesse connosco. Eu levantei-me também e despedi-me delas, dizendo que ia à casa de banho arranjar-me. Mas antes de rodar a maçaneta da porta as imagens do pesadelo preencheram-me a cabeça e a hesitação tomou conta de mim, fazendo-me ficar parada naquele lugar.
            - Kiara? Não ias tomar banho? - Perguntou Niza.
            - Hum… sim, ia e vou…
            Abri a porta e entrei para a casa de banho. Esta estava igual a todos os outros dias, e um longo suspiro de alívio escapou-se por entre os meus lábios. Pelo menos não havia surpresas assustadoras à minha espera. Tomei o meu duche como em todas as outras manhãs e quando fiquei pronta voltei para o quarto, onde Sophie e Niza tentavam decidir se haviam mesmo de ir dar o passeio ou ficar pelo castelo.
            - Ah, Kiara! O que é que te apetece mais fazer? - Perguntou Niza, fitando-me intensamente.
            O que mais me apetecia fazer? Passar o dia todo enfiada naquele quarto, com tudo às escuras, para poder meditar calmamente e com bastante concentração sobre o pesadelo.
            - Acho uma boa ideia irmos dar o passeio. - Menti.
            Felizmente, elas acreditaram em mim. Era espantosa a facilidade com que eu conseguia enganá-las. Uma das hipóteses estava certa: ou elas eram demasiado ingénuas, ou eu era uma óptima actriz.
            Por isso vesti um conjunto prático, e depois de Niza e Sophie terem tomado os seus duches e se terem arranjado, seguimos para fora do dormitório. O corredor estava cheio de raparigas que corriam de um lado para o outro.
            - Vamos tomar o pequeno-almoço e depois damos o nosso passeio, está bem? - Disse-me Niza.
            - Sim.
            Segui com elas para o refeitório. Estavam lá poucos alunos, mas não era habitual. Àquela hora, o salão de refeições devia estar completamente a abarrotar de gente. Perguntei a razão para não estar ali quase ninguém e foi Sophie a responder-me.
            - Aos fins-de-semana os alunos que têm autorização dos pais podem sair do colégio. A maioria passa estes dois dias com a família.
            - Hum, estou a perceber.
            Sentámo-nos nos nossos lugares habituais. Apoiei o cotovelo na mesa e o rosto na mão, suspirando. Sentia-me cansada. A noite tinha sido atribulada e eu não conseguira descansar em condições.
            Nesse momento, Ryan entrou pelo refeitório, rodeado dos dois rapazes com quem dividia o quarto. Vieram todos sentar-se junto a nós, o que me estranhou, pois era a primeira vez que aqueles dois comiam connosco. Apesar de Ryan falar neles e se darem todos bem, não era costume que os dois rapazes passassem tempo connosco, eu ainda nem falara com eles. Ryan sentou-se junto a Sophie e ela sorriu-lhe entusiasticamente.
            - Bom-dia meninas! - Riram-se os rapazes.
            Um deles sentou-se à minha frente. E mesmo com o estado de espírito que eu tinha naquele momento, consegui repara que ele era muito giro. Ou melhor, os dois eram giros, mas ele era mais. Tinha uns belos olhos azuis turquesa que cravou nos meus, obrigando a desviar o olhar logo de seguida.
            - Já têm planos para hoje? - Perguntou Ryan.
            - Estávamos a pensar em ir dar uma volta pelo castelo, estás a ver… um passeio ao ar livre. - Respondeu Niza.
            - Hum… iam importar-se muito se eu não fosse convosco? Temos treino de basebol hoje. - Disse Ryan, e os seus olhos recaíram sobre Sophie com uma intensidade quase palpável.
            - Claro que não nos importamos. Vão à vontade.
            Ele sorriu e depois recomeçou a conversa que estava a travar com os colegas antes de se sentarem. Quando nos deram ordem para nos servirmos, levantei-me e fui até à mesa do buffet para me servir. Escolhi as minhas waffles com chocolate, que comia todas as manhãs, e voltei para a mesa onde o grupo se mantinha a conversar animadamente.
            - Kiara, estes são o Chris e o Peter. - Apresentou Ryan.
            Chris era o rapaz giro dos olhos que pareciam safiras. Peter piscou-me o olho e sorriu-me logo a seguir. OK… mais dois para o grupo…
            - Vão ficar a treinar até muito tarde? - Perguntou Sophie.
            - O professor quer-nos em forma. Mas devemos terminar por volta da hora de jantar. - Respondeu Chris.
            - Hum… então vêm connosco noutro dia se quiserem. - Terminou Niza, levantando-se para ir buscar a sua comida.
            Quando acabámos de comer, segui com Niza e Sophie para o exterior, enquanto Peter, Ryan e Chris seguiam para a enorme clareira de treino do colégio.
            - Achaste-os simpáticos? - Perguntou Niza de repente.
            - O Chris e o Peter?
            - Sim.
            - Sim… acho-os fixes… o Ryan divide o quarto com eles, não é? - Perguntei, olhando à minha volta para apreciar o belo cenário formado pelo bosque verdejante.
            - Sim. O Peter é namorado da melhor amiga da Mariah, pelo que no início ainda tentaram que nós fizéssemos parte das Raparigas da Claque mas… isso não é para nós.
            - O grupo é assim tão mau? - Perguntei, tentando entender o que podia levar Niza e Sophie a não se darem com as miúdas que dele faziam parte.
            - Bem… elas são todas umas convencidas e arrogantes… estás cá há pouco tempo por isso ainda não te apercebeste da natureza delas. - Sophie revirou os olhos.
            - Hum… pois…
            - Mas não te preocupes com elas.
            E seguimos em silêncio, embrenhamo-nos nas árvores. Então eu comecei a sentir-me esquisita. Era como se eu soubesse para onde nos dirigíamos, o que era esquisito, porque eu nunca estivera ali antes. Adiantei-me um pouco, seguindo por entre os troncos todos iguais, passando por cima dos ramos caídos e das pedras soltas, e depois fechei os olhos. O cheiro que me rodeava era tão bom que eu podia ali ficar para sempre. A luz esverdeada batia-me em cheio na cara e fez-me continuar em frente.
            - Kiara? Para onde é que vais? - Perguntou Niza.
            Mas eu não lhe respondi, limitei-me a continuar em frente. Elas seguiram-me sem fazer barulho, enquanto o meu corpo me levava em diante, mesmo que eu não soubesse para onde estava a ir. Aquilo nunca me tinha acontecido antes e deixou-me realmente espantada. Finalmente, descobri onde ele me queria levar e fiquei espantada a olhar para aquela maravilha. Era uma pequeníssima clareira redonda, onde as árvores curvavam os seus longos ramos para o interior do círculo, formando uma espécie de abóbada verde, e a luz do sol dificilmente penetrava a parede de folhas, e quando conseguia ultrapassá-las, ganhava uma tonalidade esverdeada. No centro dessa pequena clareira, onde o chão estava coberto de uma relva macia e cheia de florezinhas brancas, havia uma árvore grande cujo tronco se torcia desde o chão e à qual era bastante fácil subir. Aproximei-me e toquei no tronco velho, sentindo o aroma das flores.
            - Uau… Sophie olha-me só este sítio! - Exclamou Niza, surpreendida.
            Virei-me para olhar directamente para elas. Pareciam tão espantadas quanto eu. Talvez nunca tivessem ido até ali.
            - Nem sei se isto ainda é abrangido pelo perímetro do colégio… estamos muito longe… - Murmurou Sophie, perplexa.
            - Pois é… Kiara, já tinhas vindo aqui?
            Eu não sabia responder-lhes. A verdade é que, conscientemente, eu nunca ali estivera. No entanto, o meu corpo soubera levar-me ali com tanta convicção que eu ia jurar que já ali estivera.
            Eu nunca ali tinha ido… mas talvez Kalissa tivesse.
            - Sim, foi para aqui que vim na tarde do… meu primeiro dia cá no colégio. - Respondi, sorrindo.
            Niza aproximou-se de mim e também tocou no tronco da velha árvore.
            - Podíamos ficar por aqui… o que achas, Sophie?
            - Concordo.
            Sophie sentou-se no chão florido da clareira e eu sentei-me ao seu lado, com Niza à nossa frente. Esta última deixou-se cair para trás e ficou a olhar para aquele tecto verde-esmeralda e a sorrir intensamente, com os cabelos negros a formar uma espécie de auréola em torno da cabeça dela.
            - Descobriste um paraíso, Kiara. - Riu-se ela.
            Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Aquele lugar era fantástico… mas por que teria Kalissa ido para ali? Não fazia muito sentido… além de que nunca me tinha acontecido que o meu corpo me conduzisse a um lugar onde ela tivesse ido. Que estranho…
            - Então Kiara, tu não vais passar os fins-de-semana com os teus pais?
            Fixei Sophie e abanei a cabeça em negação.
            - Não, prefiro ficar aqui.
            - Eu se tivesse possibilidade de os ver, acho que me escaparia daqui para os ver. - Murmurou Niza, que acabara por fechar os olhos.
            - Por que não fazes isso? - Perguntei.
            - Não posso. Os meus pais morreram há três anos atrás.
            Engoli em seco. Então ela era capaz de compreender como eu me sentia, até podia ser capaz de me apoiar.
            - Os meus também, mas já morreram há mais tempo. Eu vivia com a minha avó até há três anos atrás, quando decidi vir para aqui. Já não a aguentava mais. Este castelo é a minha casa e pronto. - Sorriu Sophie.
            - Eu acho que também vou gostar mais de estar aqui. - Respondi.
            Pois, entre muitas outras razões, era o único local onde estava segura.
            Ficámos caladas durante muito tempo, até que finalmente Niza cravou o seu olhar cristalino no meu.
            - Estás mesmo a gostar de viver aqui connosco?
            Eu pensei imenso nas suas palavras antes de responder.
            - Estou. Mesmo a sério. Eu ainda não vos conheço bem mas… acho que vamos todos dar-nos bem…
            Sophie sorriu-me.
            - Claro que vamos. Tu agora fazes parte do clã.
            - Do clã?
            - Sim. Do meu clã, ou grupo, ou o que lhe queiras chamar. - Ela encolheu os ombros despreocupadamente.
            Eu fiquei a pensar nas suas palavras durante muito tempo. Ela tinha razão. Além de que ali as amizades se formavam muito mais facilmente, pois vivíamos vinte e quatro horas por dia, todos os dias, com os nossos colegas. Era mais que natural que as relações avançassem depressa.
            - Tu tinhas muitos amigos na tua outra escola? - Perguntou Niza, ao fim de algum tempo.
            - Não.
            Os olhos de ambas cravaram-se em mim, surpreendidos.
            - Porquê? - Perguntou Sophie, incrédula.
            E agora? Como é que eu lhes explicava isso? Tentei arranjar uma maneira de lhes mentir, uma desculpa rápida que lhes pudesse dar para que elas não fizessem muitas perguntas. Sentia-me cansada de tanto mentir… mas tornava-se mais necessário a cada dia que passava.
            - Eu sou um bocado introvertida… nunca tive relações muito duradouras… e senão tivéssemos de dormir todos aqui eu continuaria a ser tímida e não me daria muito convosco.
            - Nem nunca tiveste um namorado? - Agora Sophie mostrava-se realmente incrédula.
            Corei um bocadinho. Como é que eu lhes havia de explicar que nenhum rapaz aguentava com Kalissa? Que mesmo que eu gostasse de alguém, o meu alter-ego arranjaria maneira de fazer com esse rapaz me odiasse? Era um universo completamente desconhecido para as duas raparigas à minha frente, demasiado difícil de explicar e mais ainda de compreender.
            - Não. - Limitei-me a responder.
            - Bem… aqui dentro vai ser fácil arranjar um. - Riu-se Niza.  
            - Por que é que dizes isso?
            - Ainda não percebeste que és a nova sensação cá do colégio?
            Eu fiquei petrificada a olhar para ela. A nova sensação, eu? A miúda que fugia de assassinos impiedosos e tinha de se esconder dentro daquelas paredes para ficar a salvo? A miúda que escondia um terrível segredo era a nova sensação do colégio. Oh sim, realmente era uma ideia brilhante. O meu estômago retraiu-se só de imaginar.
            - Não… eu não sou isso… - Murmurei, tentando convencer-me mais a mim que a elas.
            Sophie soltou uma gargalhada alegre que me fez lembrar uma criança.
            - És sim. Todos os rapazes, mesmo os Desportistas, estão de olho em ti. Essa é uma das razões para a Mariah te querer perto dela: para te poder controlar e evitar que o Brand se interesse muito por ti.
            - O Brand é o namorado da Mariah?
            - É, além de que é um dos rapazes mais giros cá da escola. Infelizmente, a estupidez, a confiança exagerada e a beleza estão todas ao mesmo nível. - Sophie parecia mesmo desgostosa enquanto dizia aquilo.
            - Um verdadeiro desperdício. - Suspirou Niza, voltando a deitar-se na relva macia.
            Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Como se eu não tivesse mais nada em que pensar além do rapaz todo musculado, convencido e arrogante que, só por acaso, era namorado da miúda mais irritante ali dentro. Não, realmente eu tinha mais que pensar do que naqueles dois.
            Perdi a conta ao tempo que estive com Niza e Sophie na clareira verdejante. Mas de repente comecei a sentir uma fome avassaladora e levantei-me.
            - Kiara? - Disse Sophie.
            - Vocês não têm fome? Eu estou a morrer de fome…
            - Já podias ter dito! Eu esqueci-me completamente das horas…
            Niza torceu-se para tirar o telemóvel do bolso de trás dos jeans coçados e quando viu as horas no visor do aparelho os seus olhos arregalaram-se, quase em pânico.
            - Que horas são? - Perguntou Sophie, levantando-se também.
            - Quase duas da tarde! Temos de nos despachar, o almoço já deve estar quase a acabar!
            Niza levantou-se e largámos a correr pelo bosque fora. Eu não fazia a mínima ideia de qual o trajecto que tinha seguido para chegar à clareira, por isso limitei-me a deixar que o meu corpo me levasse para onde ele queria. Niza e Sophie seguiam ao meu lado. Elas corriam tanto que eu tinha de fazer um esforço descomunal para as acompanhar. Os troncos caídos e as pedras soltas eram os meus maiores obstáculos e por uma ou outra vez quase me estatelei, mas conseguimos chegar à orla das árvores em pouco tempo. Não se via ninguém no campo de basebol. Niza soltou uma interjeição descontente e recomeçou a correr em direcção ao castelo, comigo e com Sophie atrás dela.
            - Não podemos voltar a esquecer-nos das horas desta maneira! - Avisou Sophie, ofegante.
            Subimos as escadas de entrada a correr à nossa velocidade máxima, passámos pelas grandes portas de entrada e seguimos pelos corredores fora até chegarmos ao salão de refeições. Para nosso grande alívio, a maioria dos alunos ainda se estava a servir. Avistámos Ryan lá ao fundo, sentado com Chris e Peter, e seguimos até eles, num passo mais calmo. Ryan adivinhou logo o que tinha acontecido e desatou a rir-se.
            - Não Ryan, não nos perdemos. - Disse Sophie, colocando as mãos na cintura e sorrindo alegremente. - A Kiara é que nos levou para longe de mais e esquecemo-nos das horas, mais nada.
            Chris cravou o intenso olhar no meu e eu sorri-lhe.
            - Como correu o vosso treino? - Perguntei.
            - Foi cansativo, mas correu bem. Marquei dois home runs! - Riu-se Ryan, passando o braço em volta da cintura fina de Sophie, que se sentou ao seu lado.
            Eu sentei-me em frente a Chris e Peter e Niza ao meu lado. Pouco tempo depois fomos buscar a comida e almoçámos enquanto os ouvíamos discutir as melhores jogadas.
            - Para a próxima venham ver o nosso treino! - Pediu Peter, olhando fixamente para mim.
            Eu anuí com a cabeça e os seus lábios distenderam-se num sorriso vaidoso, todo contente por eu ter aceitado a proposta dele.
            Depois Niza cravou o seu intenso olhar verde no meu e eu soube logo aquilo que ela pensava, como se estivesse realmente a conseguir ler-lhe o pensamento. Ela não estava a brincar quando dissera que todos os rapazes ali dentro estavam interessados em mim. E eu ainda nem sabia metade do que iria acontecer, mas já me sentia desconfortável com a situação. Ela desmanchou-se a rir perante a minha expressão de pânico.
            E foi naquele instante, tão banal e tão importante ao mesmo tempo, rodeada do meu novo grupo, dos primeiros amigos que tinha na minha vida inteira, que entendi que o meu lugar era ali com eles. Era ali que eu pertencia, mais do que a qualquer outro sítio neste mundo e em qualquer outro.
            Ali… com o meu clã.

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