domingo, 3 de outubro de 2010


Capítulo 2


Protegida


         Estava à espera do meu padrinho, sentada num dos bancos do aeroporto, há mais de duas horas, sozinha, cheia de frio e a tremer sem parar, a chorar desalmadamente e sem conseguir parar de pensar no que tinha acontecido. Há pouco tempo tinha comido alguma fruta e bebido muita água, e tinha ligado para o número de emergência, explicando a situação muito por alto e dizendo apenas que tinha encontrado os corpos naquela casa. Esperei que lhes dessem um bom fim e tive pena de não poder comparecer no funeral dos meus tios, mas era uma questão de vida ou de morte e eles saberiam porque eu fizera o que fizera. Mas agora já nem conseguia fazer mais nada, como se um torpor esquisito me consumisse e me fizesse ficar paralisada de terror. As imagens dos corpos dos meus tios perseguir-me-iam para sempre. E o bilhete aterrorizante que os assassinos tinham deixado para mim ainda me punha pior. Eles viriam atrás de mim. Podiam neste preciso momento andar à minha procura. E se me encontrassem? O que podiam eles querer de mim?
            Nunca fiz mal a ninguém. Nunca me meti em confusões. Pelo menos conscientemente. Por que é que isto me tinha acontecido? O que é que aqueles homens podiam ter contra os meus tios?
            Ou contra os meus pais…
            No papel estavam mencionados os meus pais. Qual seria a ligação? Os meus tios tinham sido mortos por causa dos meus pais? Porquê?
            Os meus pais, Gregory e Ellen, tinham morrido quando eu ainda era bebé. O meu pai não chegou a ver-me nascer e a minha mãe faleceu cerca de uma semana depois do meu nascimento. Não me lembro de nada acerca deles, mas vi imensas fotografias que a minha tia me mostrou e sabia toda a história. Eles eram cientistas. E tudo indicava que tinham sido mortos de uma maneira sinistra que a minha tia insistiu em nunca me revelar.
            Talvez os meus tios também tivessem sido mortos pelos assassinos dos meus pais. Mas o meu tio não era cientista. Muito pelo contrário: ele e o irmão eram tão diferentes quando água e azeite. O meu tio era um homem ligado ao desporto, à vida ao ar livre, adorava escaladas e acampar na montanha, assistir a jogos de futebol e fazer canoagem. Lembrar-me dele fez-me sentir tão deprimida que escondi o rosto entre as mãos, desatando a chorar outra vez. Eu nunca mais poderia estar com ele, ouvi-lo falar nem sorrir… tinha-o perdido para sempre…
            Então o que podiam aqueles homens querer deles? Magoá-los porquê? Eles eram boas pessoas, não tinham dívidas nem negócios ilícitos… porquê eles, porquê?
            Essa era a pergunta que me torturava e me fazia chorar mais e mais com o passar do tempo. Lembrei-me de cada detalhe dos meus tios, e revia essa noite de trás para a frente na tentativa de entender em que parte é os assassinos tinham entrado que eu não tivesse notado. Culpei-me por ter deixado a minha tia sozinha na cozinha. Se tivesse lá ficado com ela talvez pudesse tê-la ajudado a defender-se deles…
            Não, não podia.
            De certeza que eles eram fortes, e o seu objectivo era matar-me, alcançar-me. Se eu não tivesse fugido eles ter-me-iam morto e aí tinham conseguido aquilo que queriam. Eu fizera bem em fugir, embora me sentisse terrivelmente mal por ter abandonado o corpo dos meus tios.
            - Kiara!           
            Levantei a cabeça quando chamaram o meu nome. John, o meu padrinho, vinha a caminhar apressadamente na minha direcção. Reconheci-o, embora nunca antes o tivesse visto. Era um dos meus melhores amigos do meu tio e tinham imensas fotografias. Levantei-me do banco e corri para os braços abertos do meu padrinho, tentando abafar os soluços aflitivos.
            - Lamento tanto… - Murmurou ele, tristemente.
            Mantive-me abraçada a ele por uns segundos e depois afastei-me, apercebendo-me que a minha reacção tinha sido estúpida. Eu nem o conhecia bem, como é que podia estar a abraçar-me a ele? Limpei as lágrimas e afaguei os braços, tentando travar os tremores.
            - Como é que tu estás?
            Encolhi os ombros. Também devia ser difícil para ele manter aquela conversa de circunstância. Era a primeira vez que me via e não havia confiança alguma. Mas eu esforcei-me por não parecer muito má aos seus olhos.
            - Não estou bem…
            - Eu compreendo. Vamos sair daqui para fora e tudo parecerá mais fácil depois da viagem. Tens os documentos contigo?
            Assenti e passei-lhos para as mãos. John averiguou rapidamente se eu tinha tudo o que era preciso e depois esboçou um sorriso condescendente.
            - Estás pronta? Vou levar-te para um sítio seguro, não tens nada a temer enquanto estiveres comigo.
            - Obrigada John… não sei como lhe posso agradecer…
            - Ora essa, o meu dever é proteger-te. De certeza que o teu tio ficaria mais descansado se soubesse que ficavas comigo.
            Controlei um novo ataque de choro e anuí, pegando nas minhas coisas, enquanto John me conduzia pelo aeroporto cheio de gente até ao balcão do check-in. Durante todo esse tempo, eu permaneci em silêncio, tentando adivinhar para onde ele me levaria. Tentei lembrar-me da profissão de John ou de onde ele morava mas o meu cérebro estava demasiado cansado para me dar as informações. A única coisa em que eu conseguia pensar era que os meus tios tinham sido mortos e que os seus assassinos andavam à minha procura. Essa ideia fazia-me olhar para todo o lado de dois em dois minutos à espera de os ver aparecer lá ao fundo, correndo na minha direcção para me capturar. Tremia de medo só de colocar essa hipótese.
            - Kiara? Vamos, está tudo pronto.
            A voz calma de John acordou-me do pesadelo e a sua mão pousou no meu ombro, enquanto me puxava gentilmente consigo. Mas era como se conduzisse um corpo sem alma lá dentro, a minha consciência tinha voltado à casa dos meus tios e era como se eu ainda lá estivesse com eles a reviver a cena da sua morte. Só tomei noção do que estava a acontecer quando me sentei no banco do avião e John se sentou do meu lado esquerdo. Fiquei junto à janela, mas nem me apetecia olhar lá para fora. Aliás, fechei os olhos e recostei-me no banco e, apesar de saber que não conseguir dormir, tentei não pensar na tragédia que acontecera.
            Durante os primeiros minutos, o meu padrinho não disse nada, mas depois acabou por chamar a hospedeira e pedir-lhe um copo de água com açúcar. Devia pensar que eu estava demasiado fraca para falar. Quando me passaram o copo para as mãos eu bebi sofregamente e depois sorri em jeito de agradecimento, apesar de saber que o meu sorriso estava longe de ser suficiente.
            - Kiara… preciso que me expliques o que aconteceu. Sei que é difícil para ti mas… é importante, eu preciso de entender. - Murmurou John.
            Respirei fundo para me acalmar e tornei a fechar os olhos, virando-me para ele para que visse que não o estava a ignorar, e obriguei a minha consciência a voltar à cena do crime e a reviver os momentos mais horríveis da minha vida.
            - Eu estava em casa com a minha tia… íamos jantar, e o meu tio ainda não tinha chegado… mas quando eu ia sentar-me à mesa houve um corte de energia e eu fui até à saleta de entrada da casa deles para ir buscar uma vela ao móvel… e depois ouvi a minha tia a gritar na cozinha. Eu tive medo, e depois quando entrei na cozinha vi a minha tia caída no chão, tinham-lhe cortado a garganta e havia sangue no chão e… e… e eu virei-me e fui para o meu quarto, abri a janela e fugi para o telhado… e escondi-me lá até eles se terem ido embora no carro do meu tio… e depois quando voltei para dentro e cheguei ao piso de baixo vi os meus tios mortos… oh John, eu não sabia o que fazer, eu tinha de fugir, eles iam voltar para me apanhar…
            Comecei a chorar e a gaguejar tanto que John me obrigou a acalmar antes de continuar a falar.
            - Quantos eram os assassinos, conseguiste perceber?
            - Eram dois… mas não consegui ver-lhes as caras… e eles sabem quem eu sou, conheciam os meus tios, eles deixaram um bilhete a dizer que voltariam para me apanhar…
            - Eles deixaram um bilhete?! - Perguntou John, chocado.
            - Sim… e eu tive de fugir depressa para que eles não viessem atrás de mim para me apanhar… tive sorte em conseguir escapar-lhes.
            - Claro, claro que tiveste…
            John desviou o olhar do meu e eu recostei-me melhor no banco do avião. Agora que já conseguia pensar com maior clareza, comecei a pensar no lugar para onde ele me levaria.
            - Para onde… é que vamos?
            Ele fixou de novo o olhar no meu e sorriu paternalmente.
            - Para minha casa… ou a minha versão de habitação, pelo menos. Tu lembraste da minha profissão?    
            - Não… consigo lembrar-me agora… desculpe…
            - Não faz mal, eu até compreendo. Eu sou director de um colégio interno nos arredores de Blackstone, na Virgínia. É para lá que estamos a dirigir-nos neste momento.
            Tentei lembrar-me do mapa dos Estados Unidos da América e consegui localizar o estado da Virgínia. Suspirei de alívio: pelo menos não íamos para muito longe. John pareceu ficar satisfeito por eu não levantar oposições à partida, mas também, o que poderia eu dizer? Não tinha mais sítio nenhum para onde ir.
            - Tens fome ou sede? - Perguntou ele, parecendo preocupado.
            - Não… e também não consigo dormir… acho que vou apenas fechar os olhos… - Murmurei.
            - Está bem. Se precisares de alguma coisa avisa.
            Assenti e fechei os olhos, mantendo-me em silêncio durante a maior parte do voo de Alabama para a Virgínia. Comecei a tentar imaginar como seria o colégio interno que John dirigia, mas a ideia de ir viver para um causava-me uma certa impressão. Sempre estive habituada a voltar para casa depois de terminarem as aulas. Ali seria diferente… mas também por que é que eu haveria de querer voltar para a casa onde os meus tios tinham sido mortos? Nem por nada…
            Quando o avião começou a descer em direcção à pista, John tocou-me ao de leve no braço para me acordar, pois ele pensou mesmo que eu tinha adormecido. Abri os olhos e ele ajudou-me a levantar.
            - Vamos? Já chegámos.
            Anuí com a cabeça e saí com ele do avião. Fomos buscar as malas e depois o meu padrinho chamou um táxi para nos levar ao colégio interno onde ele vivia. Durante todo esse tempo eu mantive-me calada e tentei não dar nas vistas. Ainda sentia aquele medo inconsciente de que os assassinos pudessem estar atrás de mim, a espiar-me, para depois me atacarem ou mesmo matarem. Mas tentei afastar esses pensamentos da minha cabeça. Deixei que John me ajudasse a sentar no carro e depois concentrei-me em manter-me calma durante a curta viagem através dos pequenos bosques. Fomos deixando as casas e as lojas para trás à medida que nos embrenhávamos na floresta.
            - John… o colégio…
            - Chama-se Blackstone Private School e estamos quase lá, não te preocupes. - Sorriu ele.
            Suspirei e mantive-me calada. Como seria a minha nova casa? E será que eu me ia ambientar ao local? O maior problema era…
            Lembrei-me subitamente que ainda não tinha falado com o meu padrinho acerca do meu problema e virei-me para poder olhar fixamente para os seus olhos castanhos-claros.
            - John… eu preciso de saber uma coisa…
            - Sim, o que se passa?
            - O meu tio contou-lhe sobre… aquele meu problema…?
            John fez uma expressão séria e acenou com a cabeça, parecendo preocupado, tal como eu esperava que ele ficasse. A situação não era para menos.
            - Ele falava-me algumas vezes disso…
            - Pode tornar-se perigoso para os outros alunos do colégio… - Murmurei, sentindo-me mal por estar a levantar problemas antes mesmo de entrar no colégio.
            - Não te preocupes. Eu vou saber compreender se acontecer algo de mal. Não tens de te esconder junto de mim. A partir de hoje serei o teu protector Kiara… comigo estás em segurança.
            Sorri, acreditando nas palavras dele. Realmente, eu era capaz de conseguir ficar em segurança dentro da Blackstone Private School, pois os assassinos impiedosos dos meus tios jamais me procurariam lá.
            Ou procurariam?
            - Olha, estás a ver ali ao fundo, no cimo da colina? É o colégio.
            Olhei através da janela do automóvel e avistei lá bem ao fundo, algo que se assemelhava imenso a um castelo da idade média, feito em pedra negra, no cimo de uma colina verdejante. Engoli em seco. Eu ia ficar ali?
            - Achá-lo bonito?
            - Sim… e tem imensas árvores em volta…
            - Sim, acho que vais gostar de lá viver.
            A primeira imagem que me veio à cabeça depois de observar bem o castelo foi o de Hogwarts, a escola de magia e feitiçaria dos livros da série Harry Potter. Revirei os olhos. Era só que faltava; mais cenas insólitas à minha vida.
            Quando o táxi parou no parque de estacionamento - um largo terreno em terra batida em frente ao colégio, e no qual já se encontravam outros carros estacionados - John ajudou-me novamente a sair e tirou as minhas malas da bagageira.
            - Bem-vinda à tua nova casa. Vem comigo.
            E seguiu em direcção aos enormes portões de ferro forjados em metal negro, que davam entrada para o castelo. Segui obedientemente atrás dele, sem dizer nada, sentindo que as mãos me tremiam de ansiedade. O porteiro deixou o director entrar fazendo-lhe uma vénia e eu continuei atrás do meu padrinho, enquanto ele subia a escadaria de basalto até às enormes portas de entrada. Tinham um ar imponente. Os dois guardas que lá estavam, usando fardas pretas, abriram as portas para nos deixar passar. Quando passei por elas, senti o queixo a descair-se de surpresa. Aquilo era inacreditável.
            Parecia o hall de entrada de um palácio da idade média, o tecto era tão alto que dava a impressão de estarmos numa torre. Havia duas escadarias ao fundo, uma que subia para a direita e outra para a esquerda. Um tapete vermelho largo fazia a ligação entre a porta de entrada e as duas escadarias, como se fosse a passadeira vermelha dos Óscares. Os tons predominantes na divisão eram o castanho-claro, o dourado, o vermelho e o grená.
            - A escadaria da esquerda dá acesso aos dormitórios dos rapazes e a da direita dá acesso aos dormitórios das raparigas. - Explicou John.
            Assenti e continuei a examinar o vestíbulo. Do tecto descia um candeeiro daqueles de aspecto antigo, com lâmpadas a imitar o formato de velas, e a sua luz fraca chegava para iluminar completamente a divisão. No conjunto era um hall bem bonito.
            - Vamos? Vou levar-te ao teu novo quarto.
            John dirigiu-se à escadaria da direita e eu segui atrás dele sem dizer nada, mas tentando acalmar os nervos. Subimos os mais de cinquenta degraus e deparámo-nos com um corredor bastante longo que, ao chegar ao fundo, virava para a esquerda. Devia ir unir-se ao dos dormitórios dos rapazes. Os quartos de ambos os géneros estavam separados. As paredes dos dois lados do corredor estavam cheias de portas, separadas umas das outras por meio metro de parede. No chão do corredor havia um tapete como o do hall de entrada, no andar de baixo, mas ali era vermelho-escuro. As paredes eram forradas a seda castanha com folhas de loureiro douradas desenhadas nelas.
            - O teu quarto é o 77. As tuas companheiras estão em aulas, por isso vais ter de ficar sozinha por uns momentos, está bem?
            Acenei com a cabeça e ele dirigiu-se ao meu novo quarto, abrindo a porta e dando-me passagem, sempre a sorrir encorajadoramente.
            O quarto era realmente espantoso. Enorme, arejado (tomara, com a enorme janela de parapeito largo que lá tinha) e bem decorado. Pelo menos não ficava mal instalada. Havia três camas, separadas entre si por pequenas mesas-de-cabeceira em madeira do mesmo tom que a dos armários e das cabeceiras das camas.
            - Gostas do quarto? - Perguntou John.
            Sorri, sentindo-me desconfortável, e assenti.
            - Gosto, é bonito.
            - Vou deixar aqui as malas… preferes ficar sozinha por uns momentos ou queres vir comigo até aos meus aposentos?
            - Eu acho que vou ficar aqui… a ambientar-me. - Murmurei, passando a mão pelo cabelo.
            - Está bem… se precisares de alguma coisa, desces e vais à Secretaria, elas ajudam-te, entendeste?
            - Sim… e obrigada John, por me estar a ajudar desta maneira.
            Ele aproximou-se lentamente de mim e depois abraçou-me com alguma hesitação, como se não tivesse a certeza de dever fazer aquilo.
            - Lamento toda esta situação Kiara. Mas pelo menos posso estar mais tempo contigo e cuidar de ti. Os teus tios, estejam onde estiverem, ficariam felizes por eu tomar conta de ti.
            - Tenho a certeza que sim. - Sussurrei.
            Depois ele recuou e, sorrindo-me, saiu do quarto, fechando a porta sem fazer barulho. Assim que fiquei sozinha, deixei-me cair em cima de uma das camas e rebentei num choro aflitivo.

1 comentário:

  1. adorei!!
    vc é boa mesmo muito melhor que a ana gree sou tua fã
    te adolu!!
    bjss

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