sábado, 9 de outubro de 2010


Capítulo 4


Segredo


           Abri os olhos e inspirei fundo o ar. Estava tudo escuro como breu à minha volta. Virei-me e apercebi-me que estava deitada numa cama. Sentia o peito comprimido e uma dor de cabeça enorme. Consegui levantar-me a aproximar-me do interruptor na parede. O candeeiro que descia do tecto acendeu-se imediatamente, e Sophie e Niza, as minhas duas colegas de dormitório, começaram a resmungar por eu as ter acordado de repente. Mas eu estava demasiado confusa para me recordar que não devia acordá-las daquela maneira. Kalissa tinha recuperado o controlo outra vez… quanto tempo teria passado desde que ela assumira o poder do meu corpo? Um dia, dois? Ou uma semana inteira? Eu não fazia a mais pequena ideia. E quais os estragos que ela teria causado daquela vez?
            - Desculpem meninas… - Murmurei, apagando a luz.
            Movi-me em silêncio pelo quarto até alcançar a porta que dava para a casa de banho e entrei nela, tornando a fechar a porta. Olhei-me ao espelho de rosto que estava colocado acima do lavatório. Os meus olhos azuis acinzentados diziam-me que eu continuava igual. Suspirei e tentei fazer com que as minhas mãos parassem de tremer.
            Estes eram os factos: eu tinha adormecido depois de subir para o meu quarto, na primeira noite que passara na Blackstone Private School. E quando eu adormeça… bem, agora acordara outra vez e ainda era de noite. Podia nem ter passado tempo nenhum… podíamos ainda estar na mesma noite… mas eu não me sentia dessa maneira. Eu sabia sempre quando Kalissa conseguia controlar-me e expurgar-me para fora do meu corpo. Era uma sensação que se instalava dentro de mim mesma e que me alertava sempre que a troca de personalidades acontecia. E naquele momento eu sentia essa sensação a palpitar em cada célula do meu corpo. Sim, Kalissa tinha estado a dominar-me… mas durante quanto tempo?
            Odiava ter de dividir o meu corpo com aquela criatura maldosa e endiabrada. Quem teria ela insultado ou magoado desta vez? Eu esperava que ela não tivesse feito nenhuma asneira…
            Principalmente com Niza e Sophie. Elas pareciam ser simpáticas e tinham-se esforçado por me fazer sentir integrada no ambiente do colégio. Se Kalissa tivesse feito algo de mal com elas eu… eu…
            O que é que eu podia fazer afinal?!
            Sentia-me tão impotente que até dava nojo. Queria ser capaz de me controlar em todos os momentos para que ela não ganhasse poder, mas não conseguia quando estava a dormir. Na maioria das vezes, ela escolhia essas alturas para atacar, durante o sono. E ainda por cima eu estava fraca por causa da morte dos meus tios, era um alvo fácil para Kalissa.
            Abri a torneira e lavei a cara para tentar despertar. Quando acabei, saí da casa de banho e sentei-me em cima da cama, tendo noção de que não seria capaz de adormecer outra vez. Fiquei a ver Niza e Sophie dormirem, completamente inocentes. Elas não podiam desconfiar do meu segredo, da maldição que me perseguia. E como eu não podia adivinhar as intenções de Kalissa, não podia proteger as minhas colegas dela… apesar de saber que as intenções seriam todas más.
            Depois deixei que os meus pensamentos seguissem o rumo que queriam, e as imagens dos corpos dos meus tios preencheram-me a cabeça, fazendo-me sentir uma vontade enorme de chorar. Tanto que eu dava para que eles voltassem para junto de mim… as saudades que eu sentia deles magoavam-me tanto que sentia o peito a dilacerar-se mais a cada segundo que passava. Fechei os olhos e deixei que as lágrimas se soltassem deles em silêncio. Teria de ser capaz de parar de chorar quando Niza ou Sophie acordassem. O papel que eu escolhera desempenhar (e que muito provavelmente Kalissa deitaria abaixo) obrigava-me a ser forte o suficiente para suportar toda e qualquer mudança. Por isso as lágrimas não eram permitidas…
            Quanto tempo mais suportaria aquilo? Manter-me ali escondida para que os assassinos não me encontrassem? Um mês, dois, meio ano, um ano? Para sempre?
            Não. Eu não me esconderia para sempre. Mas durante os primeiros tempos era melhor manter-me ali. Na protecção das fortes paredes da Blackstone Private School e dos seus pinheiros verdejantes.
            Niza virou-se na cama e captou a minha atenção, afastando-me dos pensamentos sombrios e desesperados sobre os meus tios mortos e a emboscada que parecia pairar à minha volta. Limpei rapidamente as lágrimas e sorri-lhe quando ela acendeu o candeeiro da sua mesa-de-cabeceira. Os seus olhos verdes, cintilantes como trevos, fixaram-se nos meus.
            - Kiara?
            - Olá. Desculpa por te ter acordado à bocado… não me lembrei que estava aqui convosco…
            O que raio estava eu a dizer?!
            Pelo menos Niza devia estar demasiado ensonada para notar a estupidez daquilo que eu dissera. Encolheu os ombros e procurou pelo telemóvel no tampo da mesa, e quando o encontrou verificou as horas e os seus olhos arregalaram-se.
            - São quatro da manhã. Como é que já estás a pé?! Não tens sono?
            - Não muito… - Murmurei.
            Encolhi as pernas para as poder rodear com os braços e coloquei as costas de encontra a parede atrás de mim, uma vez que a minha cama ficava encostada a uma das paredes do quarto. Niza voltou a deitar-se mas manteve o olhar cravado no meu.
            - Ontem à noite parecias um pouco aborrecida connosco…
            O meu corpo reagiu instintivamente às suas palavras, colocando-me em estado de alerta. Ontem à noite? Então tinha de certeza passado mais que um dia… o que teria Kalissa feito daquela vez?! E como é que eu podia perguntar sem que ela achasse que eu era completamente maluca?
            - Hum… pois, talvez tenha parecido, mas não estava…
            - Nem quiseste vir para a Sala de Convívio connosco, e até o Ryan insistiu para que viesses. - Disse Niza, apoiando o rosto na mão enquanto tentava escrutinar os meus pensamentos.
            Felizmente ela não o conseguia fazer. Inspirei fundo, tentado acalmar o sentido de auto-preservação que me obrigava a manter o segredo.
            - Esta noite eu irei convosco, está melhor?
            - Sim, muito. - Um sorriso de alegria desenhou-se nos seus belos lábios. - E também vais às aulas todas?
            A minha boca quis arregalar-se de espanto mas esforcei-me por a manter fechada. Às aulas todas? O que é que ela queria dizer com aquilo? Kalissa tinha faltado a alguma aula? Ela já me estava a arranjar problemas no colégio e eu ainda só entrara para lá há um dia!
            - Sim, eu vou a todas hoje. - Murmurei, tentando dar um tom firme à minha voz.
            Niza sorriu, mais descansada, e depois deitou-se completamente, tapando-se até à cabeça.
            - Eu vou voltar a dormir, estou cheia de sono. Até logo, Kiara.
            Acenei-lhe com a cabeça e deixei que ela apagasse o candeeiro de mesa-de-cabeceira, enquanto me recostava melhor na cama e olhava para lá da janela de parapeito largo. A Lua brilhava intensamente naquele céu sem nuvens e eu concentrei-me nessa imagem para não pensar novamente nos meus tios nem na dor que as suas memórias provocavam no meu coração.


            Duas horas depois, Niza e Sophie acordaram e começou o frenesim dentro do quarto. Tive de repetir a mesma desculpa para Sophie, que também ficara desconfiada com o comportamento de Kalissa na noite anterior. Fui tomar o meu duche rapidamente, vesti um conjunto lavado e penteei-me minuciosamente. Quando fiquei pronta, desci com as minhas duas colegas de dormitório até ao salão de refeições. Nem me apetecia muito comer com eles, porque quanto menos contacto houvesse melhor, mas elas pareciam cheias de vontade de me acolher no grupo. Por isso sentei-me com elas na mesa do 11º ano e esperei que nos dessem ordem para irmos buscar o pequeno-almoço. Ryan, o amigo delas, chegou pouco tempo depois e sentou-se ao lado de Sophie.
            - Olá Kiara!
            - Oi Ryan…
            Sophie deitou-me um olhar intenso. Tossi para aclarar a voz e cravei o meu olhar em Ryan.
            - Hum… eu peço desculpa pela maneira como me comportei ontem… mas estava tão cansada que não me apetecia mesmo nada ir para a Sala de Convívio…
            - Tudo bem, não há problema.
            Sorri, sentindo-me mais calma. Pelo menos eles eram fáceis de convencer. Os alunos começaram a servir-se na mesa de buffet e eu fui buscar o meu pequeno-almoço, comendo em silêncio e respondendo apenas às perguntas que Ryan, Niza e Sophie me faziam. Depois ouviu-se o toque da campainha da escola - que na verdade era o som de um sino - e os estudantes começaram a sair do refeitório, dirigindo-se às salas de aula. Mas quando eu estava prestes a ultrapassar a porta de entrada para o salão de refeições, deparei-me com o meu padrinho, parado lá ao fundo a olhar para mim. O seu olhar tinha a dose certa de ansiedade e preocupação para me fazer parar também, e comecei a sentir as minhas mãos a tremer.
            - Kiara? Vens? - Perguntou Niza.
            Eu olhei rapidamente para ela e tornei a cravar o meu olhar em John, que parecia desejoso de falar comigo a sós.
            - Hum, eu já vou… acho que Mr. Clarckson quer falar comigo…
            Sophie pegou na mão de Niza e puxou-a consigo até à sala de aula. Eu avancei lentamente até estar diante de John e ele aquiesceu com a cabeça, sorrindo com algum nervosismo.
            - Kiara? Já és tu?
            Senti-me a corar tanto que as minhas faces queimavam. OK… ele tinha estado a falar com Kalissa… o que mais me poderia acontecer?!
            - Sim, sou eu.
            - Óptimo! Vem comigo, precisamos de falar.
            Suspirei e segui com ele através dos incontáveis corredores da Blackstone Private School, subindo escadas e mais escadas, até finalmente chegarmos aos seus aposentos. Entrámos e John fechou a porta enquanto eu me sentava na cadeira onde me sentara da última vez que estivera naquela divisão. John contornou a secretária e sentou-se na sua grande e confortável poltrona, fixando o olhar vigilante no meu.
            - Kiara… ontem estive a falar com a Kalissa…
            Acenei com a cabeça. Eu já sabia isso. Mas a pergunta que parecia gritar na minha cabeça foi mais forte e fez com que eu o interrompesse.
            - John… quanto tempo é que… a Kalissa me controlou?
            Os olhos astutos do meu padrinho semicerraram-se de desconfiança.
            - Tu não sabes? Julguei que tivesses noção da passagem de tempo.
            - Não… eu só me lembro da altura em que adormeci, na primeira noite aqui no colégio… e acordei outra vez esta madrugada. Não me lembro de mais nada.
            - Hum, isso é muito interessante… bem, só passou um dia.
            Suspirei, sentindo-me mais descansada. Só um dia. Não era tão mau quanto eu imaginara e ela não podia ter feito muitos estragos em vinte e quatro horas.
            - O que é que ela fez? - Perguntei, com algum medo espelhado na voz.
            John uniu as mãos, com os cotovelos apoiados no tampo da sua secretária, e fitou-me intensamente.
            - Ela vai trazer-nos problemas. Tenho a certeza disso. Não aceita ordens de ninguém, faltou às aulas que tinhas depois do almoço e andou durante a noite a percorrer os corredores do castelo.
            - A sério?! Oh meu deus… eu peço desculpa, eu não sei como controlá-la… - Gaguejei.
            Sentia uma vontade enorme de arranjar uma solução para aquela situação. Não podia deixar que Kalissa continuasse a controlar-me para fazer asneiras atrás de asneiras.
            - Kiara… quais foram as piores coisas que ela já fez até hoje, quando assumia o poder? - Perguntou John.
            Eu não tinha a certeza se ele aguentaria ouvir a minha resposta, mas não queria mentir-lhe. John era o meu único aliado ali dentro e o único que podia ajudar-me a lidar com a parte má dentro de mim.
            - Bem… ela um vez roubou umas peças de roupa de uma loja num centro comercial e depois tentou fugir mas foi apanhada, levada para a esquadra… e fugiu de lá, apesar de eu não fazer a mínima ideia da técnica que ela usou. Eu quando acordei era de manhã e foi o meu tio a explicar-me o que tinha acontecido, senão eu ainda não saberia.
            Falar nele fez com que um nó crescesse na minha garganta que me dificultava as tarefas de respirar e falar. Massajei o pescoço e tentei conter as lágrimas. Era como se agora John tomasse o lugar do meu tio para me proteger… durante quanto tempo mais eu teria de ser protegida de mim mesma?!
            - Isso é grave. Ela disse-me que também já tinha fugido de hospitais, escolas… que ninguém consegue prendê-la em lugar algum.
            - É verdade. Eu não sei como, mas por vezes acordo em locais tão esquisitos… nem sei como voltar para casa.
            - A sério? Não te lembras mesmo de nada?
            - Nada de nada. Uma vez acordei em Nova Iorque. Estava tão apavorada… o meu tio veio-me buscar e não sei como é que a Kalissa foi lá parar ou o que lá foi fazer, mas de certeza que não foi bom…
            - Pelo menos podes estar descansada aqui dentro. Ela não conseguirá sair do castelo.
            - Não está a entender, John… - Cheguei-me mais para a frente, sentindo uma necessidade enorme de lhe explicar a verdadeira dimensão da maldade da Kalissa. - Ninguém consegue detê-la. Ela vai arranjar problemas e mais problemas e eu nunca saberei o que ela fez.
            - Eu estou do teu lado. Vou manter-te informada. Acredita em mim Kiara, estarás em segurança aqui dentro.
            Suspirei e assenti, recostando-me na cadeira.
            - Obrigada John.
            - Eu só quero que a minha afilhada fique em segurança.
            Cravei o meu olhar no seu e nem pensei muito bem no que ia dizer a seguir, limitei-me a deixar as palavras saírem de mim.
            - Ninguém consegue controlar a Kalissa. A maldade dela é muito superior ao que a maioria das pessoas julga ser possível.
            John levou o meu aviso a sério e fechou os olhos por momentos, como se estivesse a ponderar no que eu dissera.
            - Acho que já entendi. Agora é melhor ires para as aulas, Kiara, antes que os professores fiquem ainda mais desconfiados.
            Corei novamente e levantei-me.
            - Obrigada por estar do meu lado, John. Vou dar o meu melhor para impedir que a Kalissa se solte muitas vezes.
            Ele esboçou um sorriso preocupado.
            - Conto contigo.
            Anuí com a cabeça e virei-me para a porta, saindo sem fazer barulho. Depois enchi-me de coragem para aguentar mais um dia e percorri os corredores até chegar à sala de aula de Espanhol. Bati à porta e ouvi a voz do professor a dar-me ordem para entrar. Abri a porta e deparei-me com todos aqueles pares de olhos cravados em mim. Corei tanto que se houvesse um buraco onde me enfiar eu entraria para lá de boa vontade.
            - Hum, Miss Williams… pareceu-me que ia repetir a façanha de ontem. Entre, sente-se e não me roube mais tempo da minha aula.
            Apressei-me até à mesa livre e olhei à minha volta. Quando é que os olhares mesquinhos e curiosos parariam? Apenas Niza e Sophie olhavam alegremente para mim. Engoli em seco e puxei a gaveta da mesa para trás. Lá dentro estavam livros e cadernos etiquetados com o meu nome. Hum… devia ser aquela a mesa da Kalissa no dia anterior…
            - Muito bem turma, comecem a resolver os exercícios da página noventa e seis… Miss Williams, fez o seu trabalho de casa?
            Pisquei os olhos, confusa. Trabalho de casa? Eu nem tinha vindo assistir à primeira aula como é que podia saber que havia trabalhos de casa?
            - Já vi que não. Por isso vai resolvê-los agora, despache-se. - Vociferou o professor, voltando para a sua secretária.
            Suspirei, abafando um ataque de nervos, e comecei a resolver os exercícios que ele mandara. No entanto, a minha cabeça não estava naquela sala, a minha mente tinha recuado no tempo até à noite em que os meus tios tinham sido mortos. Ver a minha tia caída no chão com o pescoço cortado a jorrar sangue sem parar fez-me fechar os olhos com força e cravar as unhas nas palmas das mãos para me controlar. Eu não queria ter de passar por aquilo. Se ao menos houvesse uma maneira de tornar tudo mais fácil…
            O professor deve ter passado a odiar-me desde essa manhã. Os meus colegas de turma achavam-me tão estranha que deixaram de se interessar por mim. Mas Niza, Sophie e Ryan mantinham-se sempre atentos a qualquer mudança de temperamento minha.
            O dia não correu bem, em resumo.
            A professora de Filosofia também não parecia gostar muito de mim, deu-me montes de exercícios para resolver e passou a aula inteira a chamar-me ao quadro, quando eu não sabia sequer o que eles estavam a dar naquela altura do ano lectivo. Na minha escola de Auburn ainda não tínhamos chegado àquela matéria em especial. Por isso, foram mais os exercícios que errei do que aqueles que acertei.
            À hora do almoço sentia-me cansada e sem vontade de continuar a encarar ninguém pelo resto da tarde. Estava a chover torrencialmente lá fora e não me apetecia ficar encharcada. Almocei em silêncio com Niza, Sophie e Ryan, enquanto os ouvia tagarelar sobre as aulas.
            - Logo à tarde temos Inglês e Educação Física… - Avisou-me Ryan.
            - Hum… o que é que estão a fazer em Educação Física?      
            - Estamos a dar Basebol. Acho que vais gostar. Mas dava um certo jeito que parasse de chover para podermos ir para o campo descoberto, dá muito mais jeito jogar aí.
            - Há assim uma diferença tão grande entre os dois campos? - Perguntei, enquanto levava uma garfada de arroz à boca.
            - Claro! Uma vez um aluno lançou a bola com tanta força na direcção de uma janela que acabou por a partir e tudo. E nunca havia home runs. Por isso decidimos passar a jogar no campo descoberto.
            - Hum… OK…
            - Nós vamos para a Sala de Convívio durante o resto da hora de almoço. Vens connosco? - Convidou Niza.
            Fiquei a ponderar na sua sugestão durante uns momentos e acabei por encolher os ombros.
            - Pode ser…
            Não sabia bem o que estava a fazer nem se era seguro, mas não queria continuar sozinha. E como mais tarde ou mais cedo eles descobririam o que Kalissa fazia comigo, não valia a pena manter-me longe deles. Se ao menos pudesse evitar que ela os magoasse ou os fizesse sofrer…
            Não sabia por que é que estava a sentir aquilo por eles. Mal os conhecia… mas aquela vontade de manter Kalissa longe deles já era muito forte…        
            Segui com eles e passámos todo o tempo restante até recomeçarem as aulas na Sala de Convívio. Eu nunca tinha visto uma divisão como aquela na vida.
            Parecia uma sala de estar de uma casa normal, só que… vinte vezes maior. Havia vários sofás, agrupados em conjuntos de três ou quatro, e também algumas poltronas de aspecto confortável. Nas paredes havia vários televisores, normalmente em frente a um dos sofás para proporcionar uma melhor vista do programa. Pelo menos quatro grandes lareiras projectavam a luz do fogo para dentro da gigantesca divisão. Os candeeiros que desciam do tecto tinham o mesmo ar medieval que os do vestíbulo ou dos restantes corredores. Na parede do fundo havia três grandes janelas de parapeito largo, como as das casas de antigamente, cujos cortinados eram espessos. Os tons predominantes eram os castanhos (várias tonalidades presentes), os vermelhos e os dourados. A sala emanava um ar acolhedor e fazia-me lembrar o Outono. Até cheirava a isso e tudo. Adorei-a assim que lá entrei.
            Niza, Sophie e Ryan dirigiram-se a um conjunto de três sofás, todos muito confortáveis, e sentaram-se. Ryan ficou num com Sophie enquanto Niza se ocupou da poltrona e eu fiquei sozinha no outro sofá.
            - Então… é aqui que vocês passam os serões…
            - Sim, é um lugar fantástico não é? Talvez a melhor divisão do colégio…
            - Para mim é fantástica…
            Depois um grupo de miúdas passou ao nosso lado, dirigindo-se a um aglomerado de sofás e puffs e poltronas onde parecia estar reunida uma equipa de basebol, tal era o número de rapazes ali presentes. As miúdas deitaram-me um olhar intenso e depois quase correram para os braços dos rapazes, sentando-se ao lado ou ao colo de alguns deles. Niza revirou os olhos.
            - O que se passa? - Perguntei, virando-me de novo para ela.
            - Acho que elas repararam em ti…
            - Elas?
            Sophie e Niza entreolharam-se com algum desconforto.
            - O grupo mais popular cá da escola, ou seja, as Raparigas da Claque. Os jogadores da equipa cá da escola reúnem-se sempre que há algum tempo livre e claro que as miúdas ficam com eles.
            Ryan parecia petrificado a olhar para a mais bonita das raparigas da claque, uma loura espampanante com uns olhos muito claros que também estava a olhar para ele. Sophie soltou uns estalidos com a língua como uma cobra atiçada e levantou-se, vindo sentar-se ao meu lado.
            - Ele está interessado nela? - Perguntei baixinho ao ouvido de Sophie.
            - Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe.
            Niza soltou uma gargalhada alegre e cravou o olhar em mim enquanto cruzava a perna.
            - Todas as miúdas cá da escola dariam a vida para se poderem juntar ao clube da Mariah.
            Mariah devia ser a bela rapariga que continuava a deixar Ryan boquiaberto. Mas infelizmente para ele, a miúda levantou-se e foi-se sentar ao colo de um jogador bastante alto e musculado que começou a beijá-la intensamente. Desviei o olhar para o rosto contorcido de ciúmes de Ryan e tentei conter o riso.
            Até ali dentro as desavenças juvenis eram iguais às do meu mundo.
            - Por que é que achas que elas repararam em mim? - Perguntei para Sophie, que estava entretida a limar as unhas.
            - Por seres a aluna nova cá do sítio. - Respondeu Niza, com um encolher de ombros despreocupado.
            - O que é realmente necessário para se ser uma Rapariga da Claque?
            - Bem… tens de ser gira, mas isso já tu és, e tens de conquistar a tua popularidade e uma posição elevada cá no colégio. E depois tens de te armar em boa e andar com o máximo de rapazes que conseguires.
            Fixei o olhar em Sophie, entendendo logo que ela não devia gostar nada de Mariah e das suas amigas. Niza não parecia nada interessada no assunto e até Ryan já se tinha esquecido do olhar intenso que a rapariga lhe lançara.
            Durante a hora que nos faltava até entrarmos para as aulas, concentrei-me em observar os alunos do colégio, tentar distingui-los entre si e decorar a maioria dos nomes à medida que Niza e Sophie mos apresentavam, enumerando as qualidades e defeitos de cada um. Ao fim do vigésimo rapaz eu já estava tão baralhada que desisti de tentar acompanhar-lhes o raciocínio, limitando-me a assentir com a cabeça de vez em quando.
            O toque do sino antigo foi a minha salvação. Levantámo-nos e seguimos para a sala de aula de Inglês. Tornei a sentar-me sozinha, depois de ter pedido os livros e cadernos à professora. E pelo menos nessa aula tentei prestar atenção ao que ela explicava, tirei apontamentos e resolvi os exercícios que tinham sido propostos. Até Niza parecia surpreendida com o meu súbito interesse pelos estudos. Será que Kalissa transmitira uma imagem tão má de mim ao ponto de deixar Niza assim tão desconfiada?
            Quando a aula de Inglês terminou, segui atrás dos meus colegas de turma para fora do colégio. Atravessámos o caminho de terra batida, ladeado por pinheiros separados por meio metro entre si, que ia desde a escadaria de entrada do colégio até ao campo descoberto, no outro extremo da Blackstone Private School. Passámos pelo grande pátio - que tinha mesas e bancos em pedra onde nos podíamos sentar a conversar e a descansar nos dias de sol - pelos imensos canteiros floridos e pelas árvores frondosas que pareciam nunca mais ter fim. Dava-me a sensação de estarmos a caminhar pela periferia de um pequeno bosque que parecia rodear o castelo, onde as copas das árvores se uniam para formarem um tecto uniforme que filtrava a luz e lhe dava uma tonalidade esverdeada. O caminho de terra batida e pedrinhas alongava-se até ao longe, e quando finalmente chegámos a uma área sem árvores, a céu aberto e na qual o sol brilhava intensamente, parámos. O professor de Educação Física esperava-nos. A clareira tinha o solo coberto de relva perfeitamente cortada e arranjada.
            - Turma, já sabem o que têm a fazer, despachem-se. Miss Williams, preciso de falar consigo.
            Enquanto Niza, Sophie e Ryan se despediam de mim e se embrenhavam nas árvores, encaminhei-me para junto do professor, um homem alto, barbudo e corpulento que me sorriu entusiasticamente.
            - És a afilhada de Mr. Clarckson, certo?
            Assenti, tentando descobrir para onde os meus colegas tinham ido.
            - Esta é a tua primeira aula de Educação Física, por isso… tenho de te explicar algumas coisas…
            Sorri, mostrando-me interessada nas suas palavras. Queria deixar a melhor impressão possível, contrastando com a ideia errada que Kalissa transmitira no dia anterior.
            - Ali ao fundo há duas pequenas casas todas feitas em madeira. Na porta de uma delas há uma tableta que diz "Balneário Feminino" e na outra "Balneário Masculino". É lá que os alunos trocam de roupa, entendes?
            - Sim… mas eu não tenho equipamento…
            - Mr. Clarckson mandou vir o teu esta manhã. Pergunta às tuas colegas qual o vestuário que te foi destinado e despacha-te, temos de começar a aula.
            - OK, obrigada…
            Comecei a correr na direcção que Niza e Sophie tinham seguido. Na verdade, os balneários não ficavam muito longe da clareira solarenga, nem vinte metros os separavam. A casa de madeira assemelhava-se imenso àquelas charnecas de montanha que aparecem nos filmes e séries de televisão. Subi os degraus do alpendre e bati à porta.
            Quando entrei, as raparigas da minha turma estavam a trocar de roupa. O interior do balneário feminino era constituído apenas por uma divisão enorme, com tecto, paredes e chão em madeira clara, e com vários cabides embutidos nas paredes, onde as alunas penduravam as suas roupas. Havia também bancos suecos junto às paredes. Tal e qual um balneário de uma escola normal, mas em vez de ser de cimento e pedra era tudo em madeira.
            - Kiara! Estão aqui as tuas coisas! - Chamou Sophie.
            Veio a correr ter comigo e pegou-me na mão, puxando-me consigo até junto de um cabide. No banco logo abaixo do mesmo estava colocada uma grande caixa de cartão que tinha o meu nome escrito em letras grandes. Aproximei-me, inspirei fundo e abri a caixa.
            - Despacha-te a trocar de roupa, o professor odeia ter de esperar. - Alertou Niza, enquanto apertava os atacadores dos ténis.
            Dentro da caixa estava um equipamento de basebol, uns ténis e um boné. Apressei-me a despir-me e a trocar de roupa, a calçar os ténis e a pentear o cabelo para depois colocar o boné por cima. Niza e Sophie esperavam-me impacientemente.
            - Vamos? Os rapazes já lá devem estar. - Disse Mariah.
            Virei-me ao som da sua voz. Ela era bonita, não se podia negar esse facto, mas parecia-me extremamente convencida, sempre a mexer no cabelo e com um sorriso delico-doce que me metia alguns nervos. Segui com Niza e Sophie para fora do balneário e corremos até à clareira, ou melhor, o campo descoberto de desporto lá da escola. O professor estava no centro do enorme espaço relvado, com um taco de basebol nas mãos. O meu estômago retraiu-se ao ver aquilo.
            Quando, aos oito anos, levei com uma bola na cara, lançada com uma força três vezes superior à que eu tinha naquela altura, deixei logo de gostar de basebol ou de qualquer outro desporto que implicasse projécteis a voar junto a mim.
            Os rapazes estavam alinhados à esquerda do professor e as raparigas posicionaram-se do outro lado, em frente a eles. Eu fiquei em frente a um rapaz que não conhecia, alto, muito musculado, de cabelo castanho e olhar atrevido, que me fitou intensamente. Corei e desviei o olhar.
            - Muito bem equipa, vamos lá começar. Miss Williams, vai ficar na equipa de Miss Andrews, rapazes agrupem-se, vamos começar!
            Mesmo que eu estivesse numa escola nova, rodeada de pessoas que não conhecia, a praticar um desporto que não gostava e para o qual não tinha jeito nenhum, comecei a sentir-me entusiasmada. Alguns alunos ficavam de fora a ver a partida, mas os melhores colocavam-se em campo para começarem a jogar. O rapaz giro e musculado que ficara em frente a mim foi para a posição de lançador (eu nunca fui muito boa a decorar regras nem nomes das posições mas sabia o básico) enquanto um outro colega ficou na posição de batedor. Os defesas também se colocaram em campo. Ryan era o batedor seguinte na contagem. Niza e Sophie vieram para junto de mim, para os ver jogar.
            - Que comece o jogo! - Gritou o professor.
            Eu não sabia como eles conseguiam jogar daquela maneira, mas rapidamente me senti agarrada pelo jogo, sem ser capaz de desviar os olhos da cena que se desenrolava à minha frente. O lançador tinha uma força tal que a bola mal se via enquanto se deslocava pelo ar a uma velocidade doida. O batedor conseguiu batê-la e depois começou a correr pelas quatro bases, também muito depressa, enquanto o defesa corria para alcançar a bola e impedir um home run. Quando o primeiro batedor foi eliminado e Ryan assumiu o seu lugar, pegando no bastão, Sophie bateu palmas ao meu lado.
            - Estás a ver Kiara? Os jogos aqui no castelo são do melhor. - Riu-se Niza, de olhos pregados em Ryan.
            Ele bateu com tanta força que conseguiu realmente um home run. As minhas duas amigas ficaram histéricas, dando pulinhos e batendo palmas. O jogo decorreu, com os jogadores a trocarem de posições entre si. Cada aluno tinha direito a bater a bola, a lançá-la ou a servir de defesa uma única vez, e depois tinha de trocar. Quando me chegou a vez de ser a lançadora, senti o medo a apoderar-se de mim. E se eu não fosse suficientemente forte?
            - Vamos lá, Miss Williams, o tempo está a passar! - Gritou o professor.
            Inspirei fundo e encaminhei-me para o meu lugar. Depois peguei na bola que Mariah me estendia, sempre ostentando aquele sorriso convencido, e preparei-me para a lançar para Niza, que fazia de batedora.
            A bola foi direitinha para o seu taco e ela começou a correr pelas quatro bases. Niza era muito rápida, até mesmo para uma rapariga da sua idade. Estava mesmo quase a chegar à quarta base quando a bola foi apanhada, impedindo que a nossa equipa ganhasse ponto. Mas eu não me importei: tinha sido um óptimo lançamento.
            Essa aula foi a que passou mais depressa, talvez por eu me estar a divertir. Não pensei que me conseguisse divertir a praticar qualquer desporto que fosse, mas descobri em mim uma faceta que até então não se tinha revelado: jogadora de basebol.
            Ao fim das duas horas de aula, seguimos para o balneário feminino para trocarmos de roupa.
            - Agora temos de nos despachar a tomar banho, o jantar só é servido entre as sete e as nove horas da noite. - Alertou Sophie.
            Eu acenei com a cabeça, mostrando-lhe que tinha percebido a mensagem, e arrumei rapidamente as minhas coisas dentro da caixa de cartão. Depois corri com elas até ao nosso quarto. Sophie foi tomar banho primeiro, enquanto Niza me explicava que tínhamos de colocar a roupa suja em sacos de plástico pretos que as empregadas do castelo deixavam à porta dos nossos quartos todas as tardes. Depois colocávamos os sacos no corredor, junto à porta do nosso quarto, e durante a noite elas vinham recolhê-los, lavavam a nossa roupa e dois dias depois devolviam-na lavada e passada a ferro. Gostei do sistema. Depois de Sophie sair da casa de banho tomei o seu lugar, tentando não demorar muito tempo enquanto tomava banho, para que Niza ainda pudesse tomar o seu duche. Quando as três ficámos prontas, descemos até ao salão de refeições e sentámo-nos nos nossos lugares habituais, enquanto esperávamos que a ordem para nos servirmos. Ryan chegou pouco tempo depois, sentando-se à direita de Sophie e à minha frente.
            - Foi um óptimo jogo! Ryan, não sabia que tinhas tanta força. - Elogiei-o.
            Ryan gabou-se, rindo alegremente, e Sophie ficou a olhar para ele, partilhando das suas gargalhadas.
            Fomos servir-nos pouco tempo depois. Comi em silêncio. A fome que sentia era tão forte que repeti o prato principal e tudo. Depois do jantar comecei a sentir-me tão cansada que me custava ter de passar o serão na Sala de Convívio. Estava exausta e sonolenta e precisava de me deitar na minha cama. Será que ofenderia Niza, Sophie e Ryan se lhes pedisse que me deixassem fazer isso?
            - Kiara, estás bem? - Perguntou Niza, olhando-me fixamente.
            - Na verdade estou cansadíssima… talvez não vá com vocês para a Sala de Convívio esta noite… - Respondi, tentando não parecer muito desejosa de ficar sozinha, e ao mesmo tempo, passar uma ideia de cansaço extremo.
            - Sim, ela deve estar exausta, foi a primeira aula de Educação Física dela aqui no colégio! Claro que podes ir descansar Kiara. Quando quiseres vens connosco. - Sorriu Sophie.           
            Fiquei agradecida por ela compreender. Assim que acabei de jantar, despedi-me deles e subi para o meu quarto. Fechei-me lá dentro, troquei de roupa pelo pijama e aproximei-me da janela, afastando os cortinados para o lado. Apenas uma brisa suave agitava os meus cabelos. Abri a janela de par em par e sentei-me no seu largo parapeito de pedra, com as pernas do lado de fora a balançarem-se no vazio, e fiquei a olhar para aquela linda Lua cheia durante montes de tempo. Sentia umas saudades enormes dos meus tios e da antiga vida, e aquela sensação de perseguição continuava a endoidecer-me aos poucos e poucos, mas agora havia algo novo dentro de mim.
            Esperança.
            Talvez não fosse assim tão difícil recuperar a alegria de antigamente. Eu só precisava de me habituar àquele lugar, àquelas pessoas, àquela realidade. John estava a ajudar-me imenso, a fazer o papel de um tio para mim. Ou de um pai… como eu nunca tivera nenhum não fazia distinções.      
            E Niza, Sophie e Ryan estavam a mostrar-se muito simpáticos comigo, tentando que eu me integrasse, ajudando-me a superar o medo e a hesitação inicial. Talvez, só por acaso, nos pudéssemos tornar amigos. Seria uma hipótese muito remota, pois Kalissa tentaria sempre estragar tudo o que eu mais me esforçasse por construir, todas as relações que eu criasse ela deitaria abaixo. Mas eu não ia desistir. Pela primeira vez na vida eu queria ter amigos, queria que eles gostassem de mim e queria ter alguém a quem pudesse contar o que estava a acontecer comigo. Aquela sensação desesperada de precisar de um ombro amigo fazia-me querer chorar. Dantes, era a minha tia que ocupava esse papel. Ela estava sempre lá, minha tia, minha mãe, minha protectora, minha melhor amiga.
            E de um momento para o outro, eu tinha perdido tudo isso.
            Baixei o olhar para as árvores lá em baixo e suspirei. Ninguém, nunca, ocuparia o lugar da minha tia, mas eu podia encontrar outras pessoas que gostassem de mim e me ouvissem e me apoiassem quando eu precisasse, que me ajudassem a lutar contra Kalissa e a esconder-me dos assassinos que me perseguiam. Pelo menos eles ainda não me tinham encontrado…
            Ainda.
            

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