Capítulo 6
Se Alguém Pensa Que me Consegue Parar
Está Mesmo Muito Enganado!
Estava a chover torrencialmente. A minha testa franziu-se pelo desgosto. Esperava um dia de sol intenso, para poder ir à clareira outra vez. Ontem tinha estado tão bom tempo…
Ontem?
Quanto tempo teria passado daquela vez? O último dia em que eu conseguira afastar aquela parasita do controlo tinha sido numa… segunda-feira. Que dia seria hoje? Aproximei-me da mesa-de-cabeceira que se encontrava entre a minha cama e a da miúda chamada Niza e peguei no telemóvel dela. Lá estava a indicação que era Domingo.
Caramba! Tinha passado demasiado tempo!
Kiara estivera a criar relações com aquelas raparigas durante todo esse tempo. Agora seria mais difícil ver-me livre delas, se já se tivessem afeiçoado à parasita que habitava o meu corpo. Ou então…
Uma ideia começou a formar-se dentro da minha cabeça. Era má… mas não interessava. O meu lema nunca se alterava: "os meios justificam os fins". Por isso faria o que fosse preciso para alcançar os meus objectivos. E o meu principal objectivo naquele momento era acabar com Kiara e deixá-la sozinha. Quanto mais fraca ela estivesse, menos tempo conseguiria manter-me afastada do controlo. Sorri. Nem ia ser tão difícil quanto eu imaginara a início. Só precisava de me fazer passar pela Kiara com bastante atenção a todos os detalhes. Não me podia escapar nenhum pormenor.
Enquanto esperava que as minhas duas novas aliadas na escalada ao poder acordassem, fui tomar banho e arranjar-me para mais um dia naquele castelo maldito. O que é que eu poderia passar o dia a fazer? De certeza que não haviam aulas ao Sábado e ao Domingo… será que nos deixavam sair dali? Eu queria mesmo ir a um centro comercial qualquer comprar um novo par de botas. As da Kiara metiam-me uma aversão tal que preferiria andar descalça a usar aquilo. Mas e se o parvo do padrinho dela não me deixasse sair? Bem, ele sabia que não me podia prender ali dentro. Ele que nem se atrevesse a colocar alguém a seguir-me. Seria pior a emenda que o soneto.
Eu sabia escapar de qualquer situação. E se os assassinos dos tios da Kiara viessem atrás de mim eu conseguiria fugir deles e manter-me a salvo. Não era a primeira vez que escapava a uma situação da qual não gostava. Na esquadra da polícia fora absurdamente fácil fugir. E ali não seria diferente. Com tantos corredores, tantas janelas e tantas portas, não havia de ser tão complicado sair quanto parecia. Eu só precisava de enganar toda a gente que se atravessasse no meu caminho.
Acabei de tomar banho e saí, encaminhando-me para o roupeiro de Kiara, já no quarto. Tinham vindo entregar o resto das roupas dela, que tinha deixado em Auburn quando fugira, assim como a maioria dos seus bens. Eu senti-me aliviada por ter mais alguma da minha roupa ali.
Niza e Sophie já tinham acordado. Ousei olhar para elas por uns momentos. Eram tão inocentes, tão crianças… mas não me preocupei minimamente com isso. Dentro de algum tempo elas deixariam de ser assim tão ingénuas.
- Bom-dia meninas. - Cantarolei, tentando imitar o tom delico-doce da voz de Kiara.
Elas sorriram-me alegremente. Ai que nervos… aquela simpatia toda deixava-me fora de mim. Mordi o lábio inferior para me controlar e virei-me para o roupeiro, enquanto escolhia a roupa a usar nesse dia.
- Estás boa, Kiara?
- Estou.
Aquele era outro facto ao qual teria de me habituar. Mesmo que odiasse aquele nome que só me trazia más recordações, tinha de me habituar a que me chamassem assim. Tudo pela personagem que eu criara.
- O que vão fazer hoje? - Perguntei, tentando não parecer muito preocupada.
- Vamos ver o treino dos Desportistas. Queres vir connosco? De certeza que o Peter ia adorar.
Niza e Sophie riram-se à gargalhada, por algo que não percebi. Quem seria esse Peter afinal?
- Hum… eu estava mais a pensar em ir… ouçam, pode-se sair do castelo não pode?
- Claro que pode. Mas é necessária uma autorização dos teus pais para poderes sair. - Alertou Niza.
Hum… aquilo seria um problema… Kiara não tinha pais e agora nem tinha tios. Ninguém me podia passar a justificação para que eu pudesse sair a qualquer momento. De repente, lembrei-me de alguém que podia ajudar-me naquilo.
- Eu acho que arranjo uma maneira de sair. Preciso mesmo de ir às compras. - Disse-lhes.
Niza e Sophie entreolharam-se tristemente. Fiquei aliviada por ver desaparecer aquela alegria enjoativa das caras delas. Um pouquinho de ansiedade não fazia mal a ninguém. Mas tentei não dar a entender que estava agrada com as expressões nos seus rostos.
- Vocês não têm autorização para sair?
- Não…
- Pois. Mas se quiserem eu trago-vos alguma coisa.
Estaria a ser exagerada? Não. Elas tinham de pensar que eu me preocupava muito com elas, que era muito simpática, blá, blá, blá.
- Não, deixa estar. Diverte-te, OK? - Disse Sophie, voltando a sorrir.
Pronto, lá se iam uns momentos de sossego. Revirei os olhos e comecei a vestir-me. Quando fiquei pronta, vi-me ao espelho de corpo inteiro que estava atrás da porta de entrada para o quarto. Estava apresentável. Pelo menos Kiara não tivera a infeliz ideia de engordar. Eu matava-a (embora não saiba bem como) se ela engordasse um só quilo que fosse. Ela teria de se haver comigo.
Mas não, eu estava maravilhosa como sempre. Pelo menos ela tinha a esperteza suficiente para cuidar daquele corpo. O cabelo tinha o tamanho ideal, as curvas estavam acentuadas. Hum… se eu conseguisse tirar aquela estúpida de dentro de mim de uma vez por todas e poder dizer que aquele corpo era só meu, seria um paraíso.
- Até logo meninas.
Saí do quarto, atravessando o corredor dos dormitórios femininos, até chegar ao início da escadaria. Mas quando eu me preparava para descer, ouvi alguém chamar o nome de Kiara atrás de mim e virei-me.
Diante de mim estava alguém que se assemelhava vagamente a uma Barbie de porcelana, mas talvez menos enjoada e sorridente em exagero. Era loura - na verdade o cabelo dela era tão bonito que me causou uma pontada de inveja - e usava um vestido bastante justo ao corpo.
- Olá Kiara. Estás boa?
Ai ai, se ela se ia tornar noutra Niza ou Sophie, eu fugia a sete pés. Quem era aquela afinal? Ainda não ouvira as colegas de dormitório de Kiara a falarem nela.
- Estou… e tu és?
Ela sorriu e lançou o cabelo para trás do ombro. Gostei daquele gesto. A miúda tinha personalidade. Aproximou-se de mim e cravou o olhar azul-bebé no meu.
- Eu sou a Mariah Andrews. Ou, por outras palavras, a líder do grupo mais popular cá do colégio.
Lindo. Pelo menos havia ali alguém dentro que não fosse uma santinha ingénua e aparvalhada. Sorri, achando que até nos podíamos vir a dar bem. No primeiro dia julgara impossível relacionar-me bem com alguém ali dentro, mas agora as coisas estavam a mudar.
- Ah, sim, já ouvi falar muito bem de ti.
Mariah não corou como qualquer outra rapariga faria. Muito pelo contrário, ela segurou o meu olhar com confiança.
- Vinha convidar-te para vires tomar o pequeno-almoço connosco, hoje. Para ver se desenjoas um pouco das más companhias com quem andas.
Concordei absolutamente com ela.
- Está bem. Eu ia comer agora, vamos?
- Claro. Meninas, vamos com a Kiara. - Disse Mariah, dirigindo-se à pequena tripulação de miúdas esgalgadas que esperavam atrás dela.
Segui com o grupo de Mariah até ao salão de refeições e sentámo-nos na mesa do 11º ano. Olhei à minha volta. Havia muito menos alunos no colégio naquele dia.
Mas antes que eu pudesse perguntar a Mariah onde eles estavam, vi um grupo de cerca de onze ou doze rapazes a entrar pelas portas principais e a aproximar-se de nós. Vinham a rir à gargalhada e a conversar animadamente. A primeira coisa em que reparei foi que eram todos umas brasas de cair para o lado. Sorri. Aquele grupo era bem melhor que o de pacóvios que Kiara arranjara.
Mariah levantou-se e correu logo para os braços do rapaz mais giro, muito alto, super musculado, de cabelo castanho curto e desalinhado, pele morena e olhos cor de chocolate. Ele beijou-a fortemente e depois cravou o olhar em mim. Eu suportei a pressão daquele olhar de reconhecimento. Corar seria para miúdas parvas. Eu raramente corava na vida.
- Quem é esta, Mariah? - Perguntou o rapaz.
- Brand, apresento-te a Kiara Williams.
Brand. Era esse o seu nome. Eu levantei-me e aproximei-me dele para o cumprimentar. Isso deixou as amiguinhas de Mariah em estado de choque, e até os rapazes pareceram ficar atarantados com a minha reacção, mas Mariah não mostrou o que realmente sentia. Brand sorriu-me intensamente.
- Já fazes parte do grupo, Kiara?
Sorri. Não sabia se era assim ou não, pelo que olhei fixamente para Mariah, que me retribuiu o sorriso.
- Claro que faz. Mas não te aproveites dela Brand, ainda é novata.
Ah ah, já tinha percebido. Brand era o cachorrinho de trela de Mariah. Felizmente que eu estava ali. Não seria assim por muito mais tempo. Acabara de arranjar uma nova distracção para os meus dias.
Todos se sentaram nos seus lugares, enquanto eu ficava junto a um rapaz quase tão giro como Brand, que olhava deslumbrando para mim. Eu sempre adorei que me olhassem daquela maneira. E ao descobrir que não era apenas ele que parecia perplexo por me ver ali, senti-me melhor ainda.
Mariah lançou-me um olhar vigilante. Hum… agora eu conseguia ver melhor o cenário: Mariah e Brand eram o casal principal do 11º ano. Os Desportistas e as Raparigas da Claque eram apenas os aspirantes aos postos que Mariah e Brand ocupavam, como se eles fossem os Reis lá do sítio. Os que estavam sentados ali no grupo eram os Condes e os Duques, e o resto da escumalha do colégio eram o povo sem classe alguma.
E eu sabia exactamente onde ia chegar.
Mas antes que me pudesse deter mais tempo sobre estes pensamentos vitoriosos, detectei um olhar lá muito longe, fixado em mim. Era Ryan, aquele amigo de Kiara e Sophie. OK… ele seria o primeiro alvo da minha lista. Curvei-me para ficar mais visível e acenei-lhe vivamente. As sobrancelhas de Ryan franziram-se de irritação. Era óbvio que ele não gostava de me ver ali. E então o rapaz que estava sentado ao meu lado, cujo nome eu nem sabia, pôs o braço em volta dos meus ombros, sorrindo-me de modo galante. Eu soltei uma gargalhada alegre, só para irritar ainda mais Ryan, o que resultou na perfeição. Ele levantou-se e abandonou o refeitório. Jackpot.
- Então, Kiara… o que vais fazer hoje? - Perguntou Brand.
- Eu estava a pensar em ir às compras… - Respondi, tentando mostrar-me despreocupada.
- A sério? E tens autorização para sair? - Perguntou uma das amigas de Mariah, impressionada.
Eu soltei uma gargalhada abafada, passando a mão pelo cabelo.
- Não tenho mas arranjo rapidamente. O director deste colégio, Mr. Clarckson, é meu padrinho.
Bingo. Os olhares de todos eles mudaram instintivamente. A admiração deles por mim crescia a cada minuto que passava. Até Mariah se mostrava interessada.
- Ah sim? Que sorte! Então importavas-te muito que fôssemos contigo? - Perguntou ela, ainda a sorrir.
- Claro que não! Assim até me podem mostrar os melhores locais para fazer compras por esta zona. Eu não sou de cá.
- De onde é que vens? - Perguntou o rapaz que tinha o braço à minha volta.
- De Auburn, no estado de Alabama.
- Hum… eu nunca lá fui, aquilo é bonito?
- É, mas eu realmente prefiro estar aqui. A liberdade é muito importante para mim e estava realmente farta de aturar os sermões dos meus pais.
- Então eles deixaram-te mesmo vir para aqui?
- Sim, nem pensarem em negar o meu pedido. Eu estou quase a fazer os dezoito anos.
OK, era mentira, ainda faltavam quase um ano inteiro para o meu aniversário, mas toda a gente me dizia que eu aparentava ter mais de dezoito anos, por isso aquela mentirinha seria apenas mais uma das muitas que eu diria enquanto ali estivesse.
Nesse momento, Niza e Sophie entraram no refeitório, com Ryan atrás delas, e reparei logo nas expressões tristes que apareceram nos seus rostos ao ver-me sentada com o grupo de Mariah e Brand. Mas o choque passou depressa e elas sentaram-se, desviando logo o olhar do meu.
Nem pensar em arranjar rivalidades.
- Bem, a que horas partimos para o centro comercial? - Perguntei.
- Depois do treino dos rapazes. Hoje acaba a que horas, Brand? - Respondeu Mariah.
- Por volta das três da tarde. - Disse Brand, a olhar para mim.
- Óptimo! Então encontramo-nos a essa hora, está bem? - Disse, levantando-me.
Mariah fitou-me com espanto.
- Sim mas… onde é que tu vais?
- Ter com eles. Até logo.
E atravessei o salão de refeições até chegar junto de Niza, Sophie e Ryan, que me fitaram com espanto e alguma irritação. Os olhos mais faiscantes eram os de Sophie.
- Olá malta. - Sorri, sentando-me ao lado de Niza.
Ela fitava-me sem querer acreditar no meu desplante.
- O que se passa? Que caras são essas? - Tentei fazer-me de desentendida.
- O que é que fazias ali com eles? - Perguntou Sophie.
- Bem… eu posso conviver com quem quiser, ou não? A Mariah convidou-me para tomar o pequeno-almoço com eles. E eu quis apenas… ver qual era o ambiente. Eles não parecem ser muito simpáticos…
- Pois, tu parecias muito divertida há bocado. - Revelou Ryan.
- Ryan, Ryan… quanto mais conflitos criares, pior se torna a tua situação. Experimenta sorrir para toda a gente. Torna tudo muito mais fácil.
E depois as pessoas presentes no salão de refeições começaram a dirigir-se à mesa do buffet para se servirem, e eu segui até lá para ir buscar o meu pequeno-almoço. Por isso passei os olhos pelos vários pontos da ementa e escolhi waffles com chocolate, apesar de saber que aquilo engordava que se fartava. Não interessa.
Quando voltei para a mesa e me sentei a comer com eles, a irritação já tinha passado e Niza e Sophie estavam de novo sorridentes e alegres, a fazer planos para esse dia. Eu não entrei muito na conversa. Tinha de arranjar um plano melhor para afastar Mariah de Brand. Isso iria dar-me um prazer enorme. Sim, essa era uma das minhas etapas principais naquele momento.
Depois de acabarmos de comer, segui com eles para a enorme clareira que era o campo de basebol lá da escola, e fiquei sentada na relva macia com Niza e Sophie a assistir ao treino. As miúdas da claque estavam do outro lado do campo a treinar os seus esquemas. Para além de Mariah, nenhuma parecia assim tão bonita. Eu até compreendia o ponto de vista dela: se estivesse rodeada de miúdas menos giras que ela, seria o centro das atenções. Mariah até era inteligente. Comecei a pensar se seria certo acabar já com ela. Até nos podíamos vir a tornar amigas…
- Em que é que estás a pensar Kiara? - Perguntou Niza, de repente.
- Estava a olhar para o Peter. Ele joga bem, não joga?
Não fazia a mínima ideia de quem era esse Peter, mas de certeza que estava em campo, e já que elas tinham tocado no seu nome, não seria de espantar que Kiara estivesse interessada nele. Observei com atenção todos os jogadores em campo, tentando perceber qual deles era o Peter, mas os únicos giros que lá estavam eram o grupo de Brand e um outro rapaz que também era bem-parecido, mas àquela distância não dava para entender muito bem.
- Eu acho que ele está interessado em ti. - Disse-me Sophie, rindo-se logo de seguida.
- Hum…
- Eu se fosse a ti decidia-me. Daqui a pouco vai começar uma guerra para ver quem fica com a novata cá do colégio. - As gargalhadas de Niza juntaram-se às de Sophie.
Uma guerra? Por minha causa? Perfeito.
- Pois, eu não quero criar inimigos… nem estou com muita vontade de arranjar namorado neste momento. Acho que vou preocupar-me mais em ambientar-me ao castelo e em estudar.
Bah, nem acredito que disse aquilo!
- Tu é que sabes. - Sophie encolheu os ombros e continuou de olhos pregados em Ryan.
Ficámos ali durante mais de três horas a ver o jogo de basebol dos rapazes. A verdade é que eles jogavam bem, além de que Ryan conseguia correr mais que a maioria dos outros rapazes, até mesmo que Brand. O outro podia ser muito giro mas o facto de se deixar ultrapassar por um parvo como Ryan fazia-o descer na tabela da minha consideração. Entretanto, Niza e Sophie não se calaram, fazendo observações às jogadas quase de cinco em cinco minutos. Quando finalmente o jogo acabou, suspirei de alívio e levantei-me.
- Onde vais? - Perguntou Niza, levantando-se também.
- Tenho de ir falar com Mr. Clarckson. Até logo!
E corri para dentro do castelo. Eu sabia mais ou menos o caminho para os aposentos do director, apesar daquela quantidade enorme de corredores e portas me confundir imenso. Quando finalmente consegui acertar com a porta, bati devagar e pedi para entrar.
- Sim? - Ouvi uma voz vinda de dentro da sala.
Entrei. John estava, como habitualmente, sentado na grande poltrona atrás da secretária apinhada de papéis. Ao ver-me entrar, sorriu paternalmente e levantou-se para me vir abraçar. Mas antes de chegar perto de mim, estiquei uma mão para o parar.
- Esqueça. Sou a Kalissa.
Os seus olhos semicerraram-se de espanto e desgosto ao mesmo tempo. Ele nunca ficava muito feliz com as nossas trocas. Mas eu também não queria saber da opinião dele para nada.
- O que é que vieste aqui fazer? - Perguntou, com a voz tensa.
- Ouvi dizer que precisamos de autorização dos encarregados de educação para sairmos do castelo.
- Sim.
- Então é um bocado óbvio aquilo que vim cá fazer, não acha? - Não estava com muita paciência para aturar pessoas lentas de pensamento.
- Hum… mas eu não te vou dar a autorização, Kalissa. Sabes perfeitamente que a Kiara corre perigo assim que sair deste castelo.
Revirei os olhos. Ai tanta protecção… não admirava que ela se fosse tornar uma santinha estúpida como as outras. Olhei para John e tentei que ele visse, só por aquele olhar, que não me conseguiria deter.
- Já sabe que eu saio se quiser. Mas acho que seria melhor fazermos as coisas a bem, não acha?
Ele cruzou os braços e cerrou os dentes, nervoso.
- Estou a avisar-te. Há guardas em todo o lado.
- Eles não são um problema.
Durante uns momentos nenhum de nós disse nada, mas depois John suspirou e descruzou os braços, começando a andar de um lado para o outro, lentamente.
- Onde é que ias?
- Não tem nada a ver com isso.
E pela primeira vez, vi-lo ficar furioso.
- Vamos lá a ver os modos! Não penses que me consegues controlar, Kalissa. Sou mais velho que tu, e muito mais poderoso! Por isso vais acalmar-te e falar com condições, estás a perceber? - Vociferou, aproximando-se de mim.
Eu sorri. Se ele pensava que me conseguia intimidar estava tão enganado…
- E quem é que você julga que é para me controlar? Eu sou Kalissa Jones. Se quiser sair deste castelo saio hoje mesmo. Estou aqui para lhe fazer um favor, não se esqueça. Se me apetecer fugir pode ter a certeza que fujo, e aí o seu plano de protecção à Kiara é imediatamente destruído. Por isso pense bem John: ninguém diz não a um pedido meu.
Ele recuou, ponderando nas minhas palavras, e recomeçou a andar de um lado para o outro. Via-lhe as mãos a tremer e o rosto contorcido pela cólera. À medida que ele se enervava, eu ficava mais forte. Mas ele ainda não se apercebera disso.
- Kalissa, se me disseres onde vais eu passo-te a autorização. - Disse ele, ao fim do que me pareceu ser uma eternidade.
Um sorriso desenhou-se nos meus lábios. Pronto. Tinha sido tão fácil convencê-lo…
- Vou comer um gelado com a Mariah. - Menti.
Ele fitou-me intensamente, como se estivesse a tentar ler-me os pensamentos e descobrir se eu estava a falar verdade ou não, mas eu pensei fortemente na parede de tijolos que criava na minha cabeça sempre que não cria que alguém descobrisse as minhas mentiras. Essa parede de tijolos impenetrável protegia os meus pensamentos de leitores como John. Ao fim de uns minutos ele desistiu de tentar adivinhar as minhas intenções e resmungou baixinho, aproximando-se da secretária para lá ir buscar um papel qualquer. Escrevinhou depressa e depois passou-mo.
- Tem juízo. Tens de estar de volta antes das cinco da tarde.
- Claro. - E virei-me para ir embora, mas depois lembrei-me de algo importante. Olhei John por cima do ombro e sorri. - E nem sonhe em pôr alguém a seguir-me. Seria o seu maior erro até agora.
Ele engoliu em seco e eu saí dos seus aposentos, até chegar ao vestíbulo do castelo. Mariah e as suas amiguinhas vinham a chegar nesse momento e olharam-me inquisitoriamente. Agitei o papel no ar para que elas o pudessem ver bem e depois sorri.
- Vamos sair ou não?
O meu sorriso espelhou-se no rosto bonito de Mariah.
- Claro, vamos a isso.
Seguimos todas para fora do castelo, descendo a escadaria de entrada e aproximando-nos dos portões. Os dois guardas fardados por que passámos ficaram a olhar espantados para mim, mas nem lhes dei importância. Ao chegar aos portões fechados, o porteiro aproximou-se, fitando-me com desconfiança.
- Miss Williams?
- Sim, sou eu. O meu padrinho, Mr. Clarckson, deu-me autorização para sair.
Dei o papel ao porteiro e depois de ele o ler aquiesceu e abriu os portões para nos deixar sair. Mariah e as restantes raparigas seguiram atrás de mim.
- Vamos divertir-nos à grande. - Riu-se Mariah.
Suspirei de alívio e pousei os sacos das compras no chão junto ao meu roupeiro. Niza e Sophie fitavam-me com desconfiança, sentadas numa das camas. Eu virei-me e sorri-lhes.
- Querem ver o que comprei?
Elas entreolharam-se por uns segundos e depois acabaram por concordar. E eu, toda orgulhosa da minha escolha, tirei o par de botas para fora do saco. Eram tão lindas, tããão fantásticas, que eu nem me importei que tivessem custado uma pipa de massa. Quem pagava era Kiara por isso não havia problema.
- São perfeitas, não são? - Perguntei.
Niza tinha os olhos arregalados de espanto, cravados nas botas pretas de camurça verdadeira e saltos altos de agulha que eu tinha nas mãos. Descalcei-me rapidamente e coloquei as botas, dando umas voltinhas pelo quarto. Até o andar era fantástico.
Adoro botas.
- São mesmo lindas Kiara… mas devem ter custado uma fortuna!
- Ora essa, não foram assim tão caras… e eu estava mesmo a precisar de umas botas. - Encolhi os ombros, não deixando que a sombra de preocupação dela me afastasse do delírio com as minhas novas conquistas.
Depois fui ao outro saco tirar o cachecol que também tinha comprado, e coloquei-o. Aproximei-me do espelho atrás da porta e vi-me. Uau. Se Kiara tivesse um gosto a vestir-se tão bom quanto o meu ainda a podiam chamar para ser modelo de passerelle ou coisa parecida.
Quando chegou a hora do jantar desci com eles até ao salão de refeições e sentei-me junto do grupo de Niza. Tinha de manter as relações equivalentes; uma vez que passara a tarde toda com Mariah e com as suas amigas era necessário estar agora com Niza e Sophie. Só para manter toda a gente feliz.
Bah. Logo eu, que odiava felicidade em exagero. Por que é que de repente me começara a preocupar com a felicidade dos outros?
Ah sim: porque se eu me revelasse e mostrasse a verdadeira Kalissa toda a gente descobriria o segredo.
Jantámos com Ryan, Chris (o miúdo giro que não pertencia ao grupo dos Desportistas) e com Peter (que também não era nada de deitar fora.) Na verdade, ele passou todo o jantar a olhar para mim. Boa. Mais um na lista de alvos que abateria em pouco tempo.
- Então Kalissa, com quem vais estar a seguir? - Perguntou Chris.
- Talvez convosco. Vamos para a Sala de Convívio não é?
- Sim. Até à uma da manhã, altura em que é obrigatório voltar para os nossos dormitórios. - Avisou Niza.
Eu assenti e continuei a comer.
Quando estava mesmo quase a acabar, senti uma dor esquisita na cabeça. Oh não. Lá vamos nós outra vez…
Comecei por deixar de conseguir cheirar. Odiava quando aquilo acontecia. Depois tudo à minha volta se transformou num borrão de tinta negra, eu não conseguia distinguir as pessoas, e deixei de ouvir as suas perguntas, as suas vozes. Tudo se tornou negro como breu, e eu estava a ser sugada para o poço escuro, enquanto perdia a noção do meu corpo e era expurgada para fora dele. Raios!
Abri os olhos, tentando controlar as respirações e entender onde estava. A primeira coisa que notei era que estava no salão de refeições, com Niza, Sophie, Chris, Ryan e Peter à minha volta, e pareciam todos muito preocupados comigo. Eu estava em choque. O que tinha acontecido? Como é que eu fora parar ali? Não era suposto estar deitada na minha cama, a dormir?
Ah sim. Kalissa novamente.
- Desculpem… não me estou a sentir muito bem…
Levantei-me e antes que eles pudessem perguntar o que se passava ou obrigar-me a ficar ali, desatei a correr para fora do refeitório, subindo à pressa todas as escadas que encontrava até chegar à porta do meu dormitório. Felizmente não estava ali mais ninguém. Entrei, fechei-me lá dentro e parei, a arfar, fechando os olhos para me controlar melhor.
Oh não…
Aquilo era novo. Nunca, em dezasseis anos, Kalissa e eu tínhamos feito a transição quando uma de nós estava acordada. A dor de cabeça que senti naquele momento foi tão forte que me fez escorregar até ao chão, deixando-me ficar lá, com as costas apoiadas na porta, e apoiando a cabeça nos joelhos para conseguir respirar melhor. Eu tremia por todos os lados.
O que é que mudara daquela vez? Ela tinha-se desconcentrado? Porquê? Ela mantinha um controlo muito forte sobre si, em todos os momentos, e apenas quando dormia eu conseguia encontrar falhas na parede de tijolos que ela criava à minha volta para me encurralar e impedir de lutar com ela pelo controlo do nosso corpo. Mas desta vez tinha sido diferente. A parede simplesmente tinha desaparecido, enquanto eu me lançava com todas as forças para a luz, obrigando-a a recuar e empurrando-a para o poço. Mas como é que eu tivera tanta força?
Fiquei ali parada a ofegar e a tremer durante muito tempo, tentando entender o que tinha mudado, e pior que tudo, o que podia ela ter feito durante o tempo que estivera a dominar. Quanto tempo teria sido? Um dia, dois dias? Mais que isso? Ela magoara alguém?
Quando em consegui acalmar o suficiente para me levantar, reparei no que tinha calçado. Aquelas botas não eram minhas. Onde é que ela as teria arranjado? Levantei-me e vi-me ao espelho junto ao qual estava encostada. Os meus olhos arregalaram-se de espanto.
OK. Ela tinha comprado as botas e aquele cachecol. E até conseguia adivinhar com que dinheiro ela os teria pago. Rangi os dentes com raiva. Odiei tanto aquela rapariga que só me apeteceu arrancá-la de dentro de mim cá para fora e pregar-lhe uns estalos valentes. As minhas mãos e braços começaram a tremer quando essa vontade foi ficando mais forte dentro de mim. Ela havia de mas pagar.
Inspirei fundo e contive o ar nos pulmões por uns segundos. Precisava de me acalmar. Quando descesse para o refeitório tinha de parecer novamente eu mesma. Mas era muito enervante não saber com o que contar, o que ela teria feito dessa vez. Suspirei. O que quer que fosse, eu saberia lidar com a situação.
Saí do quarto e atravessei os corredores e as escadas até alcançar o salão de refeições. A maioria dos alunos já estava a sair de lá, dirigindo-se à Sala de Convívio. Não me apetecia mesmo nada ficar sentada a ver televisão, fingindo que estava tudo bem, mas talvez fosse mesmo necessário para não levantar suspeitas. Por isso aproximei-me de Niza, que me olhava muito preocupada.
- Estás melhor?
- Sim, eu senti-me mal disposta, mas já estou bem. - Segredei-lhe.
E segui com ela, Sophie e os rapazes para um conjunto de sofás maior que aquele onde nos costumávamos sentar - pois Chris e Peter precisavam de mais um sofá onde se sentar - e ligámos a televisão na MTV. Peter sentou-se ao meu lado no sofá, sorrindo entusiasticamente.
- Gostas de que tipo de música? - Perguntou-me, passado algum tempo.
- Bem… depende imenso… mas ouço um bocadinho de tudo menos ópera. - Respondi.
Cruzei os braços e fixei o olhar na televisão. Sophie estava sentada com Ryan à sua esquerda e Niza à direita, e Chris ocupava a poltrona. E assim ficaram, a conversar e a rir pela noite dentro, enquanto eu tentava não desesperar e não parecer demasiado assustada. Só queria fugir dali para o quarto, enfiar-me na cama e chorar como uma criança aterrorizada.
- Kiara? Ouviste o que eu disse? - Perguntou Peter.
Eu pisquei os olhos e olhei directamente para ele. Na verdade, não tinha ouvido nada do que ele dissera desde que me sentara ali, por isso fiz um ar um tanto ou quanto envergonhado e mordi o lábio inferior.
- Desculpa… estava distraída…
- Pois, eu notei.
E deve ter amuado porque desistiu de tentar manter uma conversa de jeito comigo. Eu revirei os olhos, pois não me apetecia nada aturar amuos dele. Quando olhei para o outro lado da Sala de Convívio, deparei-me com os olhos de Mariah cravados em mim. Depois ela sorriu, embora as suas sobrancelhas estivessem franzidas de tensão. Era estranho que ela estivesse a olhar assim para mim. Afinal de contas, nunca tínhamos falado, mas eu ia jurar que ela queria que eu me sentasse junto ao seu grupo.
- Niza… passa-se alguma coisa com a Mariah? - Perguntei.
Niza fitou-me intensamente, e entendi que Kalissa já devia ter feito uma asneira qualquer. Engoli em seco, esperando pelas más notícias.
- Tu é que sabes. Agora és tão amiga dela.
O choque atingiu-me como um balde de água fria. Amiga, eu? Se nem tinha falado com a rapariga como é que podia ser amiga dela?! Mas não era só Niza a pensar dessa forma: Sophie, Ryan, Chris e Peter olhavam para mim da mesma maneira que ela, como se achassem que eu me tinha passado para as Raparigas da Claque.
Oh não… o que é que Kalissa podia te feito para os deixar assim?!
- Hum… amiga dela?
- Sim. Até passaste a tarde às compras com ela. Vais-me dizer que não são amigas? - Perguntou Sophie, irritada.
Oh raios, raios…
- Ah, isso… pois, mas eu só queria ver por que é que vocês acham que ela é tão má. - Menti, sem fazer a mínima ideia do que devia dizer naquelas circunstâncias. - Mas vocês têm razão: ela não é boa pessoa…
OK, talvez estivesse a ser má para Mariah. Nem sabia como ela era. Estava apenas a tentar levar os meus amigos a acreditarem em mim sem desconfiarem. Kalissa estava sempre a pôr-me em situações daquelas, e pelo menos eu parecia ter desenvolvido o dom de enganar as pessoas na perfeição, porque um sorriso compreensivo rasgou os lábios de Niza.
- Pois… vá lá malta, não sejam assim. Ela foi apenas em missão de reconhecimento.
Suspirei, mais descansada. Niza era fantástica, mas talvez demasiado fácil de iludir. Eu só esperava que Kalissa não tivesse descoberto esse ponto fraco e que fosse começar a destruir a vida da minha amiga por aí.
Voltámos a concentrar-nos no videoclip que passava na televisão nesse momento e eu abstraí-me do ambiente à minha volta. OK… Kalissa estava interessada em Mariah? Mas porquê? Ela nunca fora muito amigável. Não era da sua natureza afeiçoar-se às pessoas. Muito pelo contrário, ela afastava as pessoas que via que se estavam a aproximar de mim. Era essa a razão para eu nunca ter tido amigos: Kalissa destruía os laços que eu criava com essas pessoas antes mesmo de eu os poder considerar meus amigos.
No entanto, desta vez seria diferente. Eu não deixaria que ela chegasse a magoar Niza, Sophie, Ryan, Peter ou Chris, nem mesmo John. Nem queria tentar imaginar a discussão que eles teriam tido dessa vez. De certeza que o meu padrinho estava fulo com ela e só não me castigava severamente por saber que eu não a podia controlar. Portanto, eu ia ter de manter as acções de Kalissa debaixo de olho para evitar problemas mais sérios.
Mas o que é que ela podia querer de Mariah? Eu não fazia a mais pequena ideia, e por mais voltas que desse à cabeça temia nunca chegar a perceber as intenções daquela demónia. Mas de uma coisa eu tinha a certeza: Mariah que se preparasse. Se ela era o novo alvo de Kalissa, ia ficar em maus lençóis.
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