domingo, 31 de outubro de 2010

Capítulo 11


Ansiedade


            - Por que é que me estás a acordar?!
            - Levanta-te. Já são quase horas de almoço.
            - Estás a gozar! Ainda nem devem passar das sete da manhã…
            - Não estou a gozar, a sério. Anda.
            Abanei-o uma vez mais mas Ryan parecia teimoso em não se levantar. Sophie já estava na banheira a tomar duche, e Niza tentava acordar Peter. Chris já tinha ido para o quarto dos rapazes para se arranjar.
            - Ryan, a sério, daqui a nada vêm à nossa procura e eu não quero arranjar problemas. Vá lá, acorda.
            Ele resmungou qualquer coisa que não compreendi e depois abriu os olhos e ajudei-o a sentar-se na cama, contente por ter vencido o sono dele.
            - Parecias a minha mãe…
            Afastei-me imediatamente de qualquer pensamento sobre parentes meus ou de outra pessoa e ignorei o comentário de Ryan, que não tinha bem noção do que estava a dizer por ainda estar meio adormecido.
            - Anda, servem o almoço daqui a pouco.
            Ele tornou a resmungar e depois levantou-se e eu levei-o até à porta do quarto, sorrindo-lhe.
            - Obrigada pela festa de ontem. Estava mesmo a precisar de animar um bocadinho.
            - Eu sei Kiara. Pressinto quando estás a precisar de ser animada.
            Sorri e soube que aquilo que ele dizia era a verdade. Ryan notava sempre. O meu talismã contra a infelicidade.
            - Obrigada na mesma.
            - OK. Agora vou-me arranjar está bem? Até já.
            Saiu e viu-o a desaparecer na curva do corredor. Depois voltei para dentro do quarto. Peter também já se tinha levantado e preparava-se para sair. Sophie estava a sair da casa de banho, com o corpo enrolado na toalha de banho, e Niza apressou-se a levar Peter para fora do quarto.
            - Então Kiara, gostaste da mini festa? - Perguntou Sophie, sorrindo.
            E ao contrário do que eu pensaria que pudesse fazer, disse a verdade absoluta quando lhe respondi.
            - Adorei. A sério, obrigada por me terem alegrado.
            - É para isso que cá estamos. - Sorriu ela, e depois foi para junto do seu roupeiro para escolher a roupa desse dia.
            Fui para a casa de banho para tomar banho e arranjar-me para mais um Domingo na Blackstone Private School. Quando fiquei pronta, segui com as minhas duas amigas para o salão de refeições e sentámo-nos, à espera dos rapazes para nos irmos servir de comida. Mas enquanto estávamos à espera, Mariah surgiu ao meu lado.
            - Olá Kiara!
            - Oi Mariah. Estás boa?
            Apesar de não gostar muito dela, tinha de ser simpática e mostrar-me amigável. Se eu não fizesse isso, Kalissa arranjaria maneira de tornar tudo num Inferno ainda pior.
            - Estou. Hoje vai haver treino da Claque. Gostaríamos que estivesses presente. - Disse ela, na sua voz pomposa.
            Assenti e continuei a sorrir-lhe.
            - Contem comigo.
            Não sei dizer se ela ficou muito contente com a minha resposta, porque deu logo meia-volta e foi-se embora para junto das Raparigas da Claque, e não tornou a olhar mais na minha direcção.
            Eu ia ficar a pensar numa maneira de terminar com aquela fachada toda se Ryan, Peter e Chris não tivessem chegado e não se sentassem connosco na mesa.
            - Vamos comer? Vá lá, estou a morrer de fome. - Disse Ryan.
            Fomos buscar os pequenos-almoços e tornámos a sentar-nos, comendo em silêncio durante os primeiros minutos. Chris tinha o olhar pregado no meu, e eu soube o que ele estava a fazer. Sorri como se estivesse a provocá-lo e imaginei a parede invisível que o impedia de aceder aos meus sentimentos. Pensei nela com tanta convicção que foi como se realmente Chris esbarrasse numa parede de tijolos. O espanto no seu rosto fez-me rir à gargalhada.
            - O que se passa com vocês os dois? - Perguntou Peter.
            - Estou só a brincar com ele. - Sussurrei.
            Chris sorriu-me de modo perverso e semicerrou os olhos. Aquela expressão fazia-me lembrar um tigre preparando-se para atacar a sua vítima, mas primeiro querendo fazê-la sofrer ao brincar com ela. Eu mantive a ideia da parede invisível bem forte na minha cabeça e durante uns momentos nenhum de nós disse ou fez nada, limitando-os a lutar em silêncio apenas por sensações e ideias. No fim, Chris resmungou e afastou-se de mim. Não me tinha apercebido, mas estávamos ambos debruçados sobre a mesa do refeitório, com os rostos muito próximos enquanto nos defrontávamos. Quando ele se afastou eu fiz o mesmo e soltei uma genuína gargalhada alegre.
            - Estás muito forte hoje. Demasiado concentrada. - Riu-se ele.
            O som da sua gargalhada era agradável. Aquele riso que eu daria tudo para continuar a ouvir para sempre.
            - Tenta mais tarde e pode ser que me apanhes desprevenida.
            - Vou tentar.
            Continuei a comer, tentando não corar. Quando acabámos o pequeno-almoço, segui com eles para fora do refeitório. Era Domingo e tínhamos um teste na semana seguinte, pelo que devíamos começar a estudar.
            - Vamos para a biblioteca, OK? - Sugeriu Niza.
            - Pensei que a Sala de Convívio também servisse como sala de estudo. - Murmurei, seguindo atrás dela.
             - E serve, mas está lá sempre tanta gente que não te consegues concentrar em condições. - Disse ela.
            Sophie veio connosco até ao quarto para irmos buscar os livros e os cadernos e depois fomos para a biblioteca do castelo. Aquela devia ser uma das divisões menos mudada desde o tempo em que a realeza habitara ali. As paredes altas pareciam feitas de estantes cheias de livros e mais livros, e no centro da divisão havia uma espécie de patamar mais elevado com mesas e cadeiras onde alguns alunos estavam sentados a estudar. Os rapazes vieram atrás de nós até uma mesa larga e sentámo-nos lá. Fiquei com Chris à minha direita e Sophie à minha esquerda. Abri o livro de Físico-Química e comecei a ler, a tentar compreender.
            Eu nunca soube muito bem como era estudar em grupo porque nas minhas escolas anteriores nunca me convidavam para trabalhos de grupo. Mas depressa percebi que estudar com Ryan, Chris e Peter na mesma sala era impossível. Eles passavam mais tempo a fazer piadas e a rir à gargalhada do que a resolver exercícios, e quando faltava menos de uma hora para o almoço eu desisti de tentar concentrar-me e olhei para Ryan de modo reprovador.
            - Vocês ainda não devem ter compreendido nada da matéria.
            - Oh Kiara, vá lá, o teste corre sempre bem! - Resmungou Peter, piscando-me o olho.
            Revirei os olhos e continuei a estudar. Chris riu-se baixinho e aproximou-se mais de mim.
            - Já que estás tão empenhada nisso... ajuda-me a resolver este exercício aqui, se não te importares.
            Suspirei e expliquei-lhe como fazer os cálculos. Pelo menos Chris não teve a infeliz ideia de brincar com o meu esforço e parecia realmente interessado na minha maneira de explicar. Quando acabei, ele fez-me perguntas sobre aquilo que eu tinha estado a estudar, enquanto Sophie se entretinha a brincar com Ryan e Niza tentava fazer com que Peter se empenhasse.
            O tempo de estudo finalmente acabou e arrumámos as nossas coisas, saindo da biblioteca. Fui com Niza e Sophie deixar os nossos pertences no quarto e depois seguimos para o salão de refeições para comermos. Vi Mariah a olhar para mim do outro lado do salão e decidi ir falar com ela antes de ir buscar a comida.
            - Vão comendo, eu não demoro nada. - Disse para Sophie.
            Nem lhe dei tempo de começar a protestar por ver com quem eu ia ter, dei meia-volta e encaminhei-me para a zona onde Mariah e as restantes Raparigas da Claque estavam sentadas a almoçar.
            - Olá Mariah.
            - Olá.
            - A que horas começa o treino? - Perguntei, tentando parecer muito interessada.
            - Às quatro da tarde, está bem?
            - Sim. Vemo-nos lá.
            - OK.
            Voltei para a mesa do meu grupo e sentei-me. Não sabia explicar bem porquê, mas Mariah irritava-me solenemente. Eu nunca tinha conversado muito com ela - eu não, Kalissa sim de certeza absoluta - mas já conseguia entender o quão irritante e convencida aquela miúda era. Como se achasse que o mundo inteiro girava à volta dela. Mas pela minha saúde e pela dos meus amigos era bom que eu continuasse a dar-me bem com ela, não fosse Kalissa deitar tudo por água abaixo.
            Durante todo o almoço eu estava abstraída dali. Só conseguia pensar nalgo que não devia realmente, mas que não me saía da cabeça.
            Eu tinha de ir a Auburn.
            Mas John jamais me deixaria sair do castelo sem protecção. No entanto… eu queria ver a campa dos meus tios, queria deixar lá flores, queria falar com eles. Depois até poderia voltar para o colégio mas não ficaria em paz até fazer isso.
            - Kiara… agora está a ser fácil de mais.
            Levantei o olhar para o cravar em Chris, que sorria provocadoramente.
            - Então em que é que eu estou a pensar neste momento?
            Ele franziu a testa como se aquilo fosse algo muito difícil de saber.
            - Algo está a preocupar-te. Algo que não queres contar-nos.
            Eu ri-me à gargalhada, tentando disfarçar.
            - Tens futuro como médium.       
            Ele revirou os olhos e continuou a comer.
            Depois do almoço fomos para o exterior. Estava demasiado bom tempo para ficar dentro das paredes do castelo. Seguimos até à clareira do desporto e deixámo-nos ficar sentados na relva, junto às árvores no limiar do bosque.
            - Então vais treinar com elas, não é? - Perguntou Ryan.
            - Terá de ser.
            - Se não gostas dos treinos… por que é que continuas a ser uma Rapariga da Claque? - Perguntou Niza.
            Eu não sabia o que lhe dizer. Não podia contar-lhe a verdade. Limite-me a suspirar.
            - Eu até gosto de fazer parte da claque… mas não gosto da Mariah.
            - Pois, dessa nenhuma de nós gosta. - Concordou Sophie.
            Tive a impressão de que os rapazes discordavam dessa opinião, mas felizmente mantiveram-se calados.
            Mas eu não sentia apenas irritação pela Mariah. Sentia também… pena. Porque o que quer que Kalissa lhe fosse fazer, não seria nada bom.
            Deixei-me ficar em silêncio, sem querer saber da conversa que Ryan, Peter e Sophie mantinham entre eles. O aroma das folhas das árvores era bom o suficiente para me distrair do resto.
            Quando chegou a hora do treino da Claque fui para o balneário feminino para me equipar e depois fui ter com Mariah e com as suas amigas ao local onde elas já estavam reunidas.
            - Ah Kiara, ainda bem que já chegaste! Agora já podemos começar. - Sorriu Mariah.
            Foi ligar o rádio e colocou-se à nossa frente. E depois começou a fazer uma coreografia que eu achava impossível de conseguir imitar, torcendo-se e esticando-se como se fosse uma boneca de plástico, e no fim nós tivemos de repetir os seus movimentos.
            Ficámos mais de quatro horas naquilo e o treino foi bastante intenso, mas pelo menos ela não embirrou comigo nem disse que eu não sabia dançar e que não estava à altura daquele cargo. Acho que me safei bem.
            Assim que acabou o treino despedi-me delas e corri até ao balneário para trocar de roupa e corri até ao castelo. Já estava a anoitecer e eu ainda tinha de tomar banho antes do jantar, por isso despachei-me o mais depressa que consegui. Depois desci até à Sala de Convívio, onde o meu grupo estava reunido à espera do jantar. Aproximei-me deles e sentei-me ao lado de Sophie e de Chris. Eles estavam a ver televisão.
            - Tu danças mesmo bem, sabias? - Elogiou Chris.
            Corei e lembrei-me subitamente do sonho que tivera na noite anterior.
            - Obrigada.
            - Acho que devias mesmo continuar na Claque. Ignora a Mariah. Se aquilo é importante para ti não tens de abdicar por causa dela.
            Sorri e continuei a olhar para ele. Chris era mesmo fantástico.


            Os dias no colégio foram passando. Os testes da semana seguinte correram bem. As aulas continuaram com o mesmo grau de dificuldade que as restantes, e a relação com o meu grupo também ia bem. E eu estava feliz por Kalissa não andar a interferir, por se manter quieta no fundo da minha cabeça. Era tudo mais fácil quando ela não se exibia.
            Estávamos na noite de sexta-feira. O meu grupo e eu estávamos sentados nos sofás da Sala de Convívio a ver televisão. Tínhamos acabado de jantar há mais de duas horas e o cansaço da semana de testes estava a apoderar-se de mim. Mal conseguia manter os olhos abertos, apesar de Niza ter insistido que o filme da televisão era muito interessante.
            - Tens sono, Kiara? - Perguntou Chris.
            Eu assenti e ele puxou-me para os seus braços, deixando-me descansar a cabeça no seu colo. Fechei os olhos e sorri, aninhando-me nele.
            - Obrigada. - Murmurei.
            Ele recostou-se no sofá para me colocar mais confortavelmente e depois começou a fazer-me festas no cabelo, acalmando-me tanto que eu ia jurar que adormeceria profundamente se Niza não se tivesse rido à gargalhada com algo que vira no filme. Mas sabia bem estar ali junto a Chris sem ter de falar de nada. Ele compreendia como eu gostava do silêncio naqueles momentos.
            Perto da uma da manhã, senti-o a mexer-se e a levantar-se, tendo cuidado para não me acordar, mas já não valia a pena. Abri os olhos e levantei-me também.
            - Vamos para o quarto? Daqui a pouco vem por aí o guarda à nossa procura.
            Acenei com a cabeça e ele puxou-me consigo pela mão. Eu estava tão cambaleante que ele até tinha vontade de rir. Levou-me até ao meu dormitório e depois abriu a porta devagarinho.
            - Por que é que não me acordaste quando a Niza e a Sophie vieram para cima? - Perguntei, baixinho.
            - Estavas a dormir tão bem que não tive coragem para te acordar.
            Sorri-lhe de modo irónico e beijei-o no rosto antes de ir em direcção à cama. Nem tive forças para trocar de roupa, deixei-me adormecer em cima da cama e pronto.
           

            No Sábado passei a manhã toda a estudar com eles até ao almoço, e como não tinha treino da Claque, fiquei a ver televisão com eles na Sala de Convívio. Lá fora chovia a potes. A chegada de Outubro fazia-se com chuva e frio e eu já tinha começado a vestir roupa mais quente. Nessa tarde estávamos a ver a MTV mas eu não estava muito preocupada com isso. Na minha cabeça pensava numa maneira de continuar a manter Kalissa afastada do controlo. Nem dei por Chris me estender a mão.
            - O que se passa? - Perguntei, olhando para ele.
            - Vem comigo.
            Levantei-me e peguei na sua mão. Chris lançou um olhar intenso a Ryan, que assentiu uma só vez, e fui com Chris para fora da Sala de Convívio. Não andávamos depressa porque não havia pressa de ir a lado nenhum. Mas Chris estava preocupado com alguma coisa e eu queria saber o que era, mas ele não falava.
            - Chris… por que é que me pediste que viesse contigo?
            Ele abrandou o passo mas continuou sem dizer nada. Eu ainda não tinha ido àquele corredor em especial porque ficava muito afastado do caminho que eu fazia todos os dias. Mas Chris tinha-me levado para ali por algum motivo em especial. Não estava mais ninguém naquele corredor sombrio.
            - Chris…
            Ele aproximou-se mais de mim, parecendo cada vez mais preocupado.
            - Kiara… eu queria dizer-te uma coisa… mas não podia ser com os outros junto a nós.
            Eu não sabia dizer porquê mas comecei a sentir-me esquisita. Recuei até à parede e Chris ficou mesmo à minha frente.
            - O que é que é assim tão importante e secreto que os outros não possam saber? - Perguntei, sentindo a voz a falhar.
            Ele aproximou-se tanto que já podia falar baixinho e eu compreenderia tudo à mesma.
            - Eu tenho estado a pensar…
            - Sim?
            - Tu gostas de estar aqui connosco, não gostas?
            Engoli em seco. Aquela pergunta tinha rasteira, de certeza, mas eu ainda não tinha descoberto qual era por isso de certeza que ia cair.
            - Claro.
            - É que… por vezes pareces… ansiosa, distante… como se algo fora do castelo te preocupasse… são os teus pais?
            Tentei não chorar. Ele compreendia-me muito melhor do que parecia.   
            - Não. Eu já não me dava muito bem com os meus pais e agora… sinto-me bem aqui dentro.
            - Então o que é que te preocupa?
            Eu não sabia o que lhe dizer porque não queria mentir-lhe mas também não tinha coragem para lhe falar da Kalissa.
            - A escola. E adaptar-me a tudo aqui dentro. E manter-me calma.
            Ele estava agora tão próximo que eu comecei a sentir-me a tremer embora não quisesse, e de repente a mesma sensação que eu tivera no sonho entrou-me na cabeça, fazendo-me engolir em seco. Aqueles olhos como duas turquesas fizeram-me sentir pequenina e vulnerável e não sabia o que dizer nem o que fazer para impedir Chris de se aproximar mais. Porque eu deixei de saber se queria que ele estivesse perto de mim ou não.
            - Chris… - Comecei a dizer, mas depois não fui capaz de terminar.
            Já sentia a respiração dele a fundir-se com a minha, quente e doce. Fechei os olhos para não ter de continuar a fixar o meu olhar com o seu. O que estava a acontecer? O que se ia passar? O que é que Chris tinha na cabeça para fazer aquilo?
            - Não sei… ainda não descobri… uma maneira de te fazer entender que podes confiar em mim… - Sussurrou ele, com os lábios a poucos centímetros dos meus.
            Eu não estava em condições de falar. Tudo à minha volta tinha desaparecido num borrão escuro e só interessava Chris, parado muito próximo de mim, de olhos cravados nos meus.
            - Eu confio em ti. - Murmurei.
            Era verdade. Eu confiava mais em Chris do que em Ryan ou Peter. Ele era o meu melhor amigo. Aquela pessoa sem a qual eu já não me imaginava a viver. No entanto, era esquisito tê-lo ali tão próximo de mim.
            - Não faças isso. - Consegui finalmente dizer.
            Então ele parou, como se tivesse apanhado um choque verdadeiro, ficando ali junto a mim mas sem avançar mais. Eu inspirei fundo - o seu cheiro estava em toda à parte, tão fortemente atraente que eu me senti tentada a chegar-me mais para ele mas controlei-me - que não fui capaz de aguentar a ansiedade que me corria nas veias naquele momento.
            - Porquê? - A sua voz já estava a passar de doce para magoada.     
            Porquê? Por mil motivos diferentes, mas sobretudo… porque eu não sabia se conseguiria parar quando ele me beijasse. Era uma sensação sufocante, opressiva, fazia-me quase desmaiar só de pensar nela.
            - Porque eu não quero que me beijes…
            As minhas mãos crisparam-se na parede atrás de mim quando percebi que estava a mentir. O meu coração batia tão depressa e com tanta força que de certeza que Chris o ouvia claramente. Era um sinal de que eu estava a mentir. Um sinal bastante óbvio que queria que ele me beijasse, no entanto, ele obedeceu ao meu pedido.
            Eu nunca tinha sido amada a sério, por isso, também não sabia amar outra pessoa em condições.
            - Tudo bem.
            Recuou, ficando a meio metro de mim, e eu pude respirar melhor. Baixei a cabeça, não querendo encará-lo, e respirei tanto que os meus pulmões começaram a doer-me, mas o aroma intenso de Chris ainda estava à minha volta.
            - Desculpa. - Sussurrei.
            Ele não me respondeu. Limitou-se a encostar uma mão à minha face e a sorrir ternamente.
            - Não faz mal. Tu não estás bem e eu entendo isso.
            Engasguei-me e tossi para aclarar a voz.
            - Eu estou bem.
            - Não estás não. Entende de uma vez por todas, Kia: eu sou o único que já entendeu que não és quem dizes ser.
            Cravei o meu olhar no dele, sentindo o poder das suas palavras a entrar na minha cabeça e a alojar-se lá para jamais sair. Vi o desejo naqueles olhos azuis-claros e mordi o lábio inferior para me controlar e não desatar a gritar e a chorar como uma maluca.
            - Eu sou quem sou.
            Ele reaproximou-se, no entanto, ficou mais longe do que quando me tentara beijar.
            - Isso é o que vamos ver daqui a uns tempos.
            E encostou os lábios à minha testa, deixando-os lá ficar durante quase um minuto. Fechei os olhos e senti o corpo a perder as forças. Não fazia ideia do que se estava a passar comigo, se aquilo seriam consequências do cansaço e do estudo de toda a semana, ou se eu estava apenas demasiado aluada com Chris para conseguir manter as pernas a suportar o meu corpo.
            Fosse o que fosse que se passasse comigo, adorei quando Chris envolveu o meu corpo com os seus braços fortes, impedindo-me de cair de joelhos à sua frente, e me abraçou contra si.
            - Mas fica ciente de uma coisa: não te vou deixar, mesmo que esse segredo que guardas seja pior do que eu imagino. E quando sentires que estás preparada para mo contar… eu estarei aqui para o ouvir.
            Assenti e depois rodeei a sua cintura com os meus braços. Não me estava a controlar pela cabeça. Queria apenas estar nos braços dele sem pensar em mais nada. Aquele afastamento tão radical da minha linha de controlo fez-me pensar que Kalissa se conseguiria soltar, mas esforcei-me por a manter bem longe para que não interrompesse o meu momento.
            - Desculpa Chris. Mas não te posso contar o que se passa.
Capítulo 10


Madrugada


            Eu achava que Peter ia odiar-me depois de ouvir a minha mentira.
            Eu achava que os meus amigos nunca mais quereriam olhar para mim.
            Eu achava que Chris se ia lembrar de um factor qualquer que me colocasse numa situação constrangedora e me fizesse ter de mentir mais ainda, algo que eu evitaria fazer a todo o custo.
            Eu achava que Mariah e as outras Raparigas da Claque se virariam contra mim, tal como os Desportistas, quando eu deixasse de passar tanto tempo com eles.
            Mas estava redondamente enganada.
            Peter levou-me consigo até ao refeitório para que eu pudesse almoçar, apesar de estar quase na hora de entrarmos para a aula de Inglês. Comi sofregamente, com os olhos dos meus amigos postos em mim, sentindo que ia morrer à fome se não me alimentasse. Chris ria ao ver o meu ar sôfrego, e quando acabei com a tacinha da gelatina de morango um sorriso afigurou-se nos meus lábios.
            - Credo Kiara, pareces aquelas crias de lobo que comem pela primeira vez! - Riu-se Niza.
            Senti-me a corar novamente e depois olhei para cada um deles. Tinham-se aguentado sem me perguntar nada até eu acabar de comer mas sabia que agora teria de lhes explicar o que se passara comigo nos últimos cinco dias para eu ter mudado tanto de um momento para o outro. Inspirei fundo e olhei uma última vez para Chris, enchendo-me de coragem.
            - Bem… vocês devem estar todos a perguntar-se o que raio aconteceu comigo ao pequeno-almoço de hoje.
            Os olhos de Sophie brilharam de curiosidade.
            - Claro. Podes começar a explicar-te.
            Suspirei. Ela era bastante previsível.
            - Vocês nem vão acreditar no que eu vou dizer. Mas o Chris e o Peter acreditaram, pelo menos… portanto peço-vos que confiem em mim.
            - Nós confiamos. - Disse Niza alegremente.
            Sim. Ela confiava. A única pessoa do grupo que eu tinha a certeza que acreditaria em tudo o que eu dissesse era Niza.
            - Eu tenho ataques de amnésia. Ou seja… eu posso acordar numa manhã e não me lembrar do que fiz nos dias anteriores. Foi o que aconteceu hoje. Quando eu acordei, ainda estava convencida que era a manhã de Domingo, até ver a data no meu telemóvel. Portanto, não me lembro de absolutamente nada do que tenha acontecido desde essa altura. Daí ter ficado tão chocada quando o Peter me beijou, porque não estava nada à espera.
            Ryan estava estupefacto a olhar para mim, sem querer acreditar. Niza tinha o queixo descaído e os olhos arregalados. O bonito rosto de Sophie estava contorcido numa máscara de desconfiança e incredulidade. Chris e Peter mostravam-se quase indiferentes, pois já tinham ouvido aquilo.
            - Estás a gozar?! - Gaguejou Niza por fim.
            - Quem me dera estar.
            - Mas… há quanto tempo é que estes ataques duram?! - Perguntou Ryan, fazendo contas pelos dedos.
            - Desde sempre, praticamente desde que nasci que tenho ataques destes.
            - Qual é a tua ideia, afinal?! Por que é que não nos contaste? - Exaltou-se Sophie, nervosa e assustada.
            - Porque… bem, eu não queria me achassem maluca ou algo do género…- Tartamudeei, a olhar para a toalha da mesa.
            - Eu cheguei a pensar que fosses meia louca, sim. De vez em quando tinhas umas atitudes esquisitas. Mas não quis ligar, pensei que estivesse a ser paranóica. - Disse Sophie.
            - Pois, mas não estavas.
            - Tu não devias ter-nos escondido isto, Kiara!
            - Eu sei. E peço desculpa.  
            - Como é que queres que confiemos em ti se não nos contas a verdade?
            A pergunta de Niza atingiu-me como uma facada no peito, mas nenhum deles sabia a verdadeira razão para o meu choque face às suas palavras. Era como se ela estivesse a falar relativamente ao segredo verdadeiro. Como se ela tivesse adivinhado que eu e Kalissa partilhávamos aquele corpo. E ela perguntava como podia confiar em mim se eu não lhe contava tudo. Pois. Era mais que normal que ela achasse isso e o pior era que eu não tinha uma resposta para lhe dar.
            - Niza… vais ter de te contentar com aquilo que te conto. - Murmurei.
            Estive mesmo quase a implorar-lhe que acreditasse em mim, a dizer-lhe que não podia contar toda a verdade porque fugiriam de mim a sete pés se soubessem o que eu era, mas consegui manter-me calada.
            - Sabes Kiara, eu não sei o que te diga neste momento. - Respondeu Ryan, a voz baixa e controlada.  
            - Por favor… não fiquem zangados comigo… não queria nada ter-vos escondido isto, mas foi necessário.
            - Eu quero acreditar em ti, Kiara. Quero mesmo. Mas tens de nos dar provas de que podemos confiar em ti. - Disse Sophie.
            - Que provas é que vocês querem?
            Sophie e Ryan entreolharam-se por momentos e depois fixaram os olhos em mim com uma intensidade esmagadora.
            - Queremos que daqui em diante não nos escondas nada.
            Gaguejei, sentindo as mãos a começar a tremer. Se os desiludisse outra vez eles deixariam de confiar em mim, o que até era normal. E eu tinha de evitar isso a todo o custo.
            - OK… eu não vos escondo mais nada. - Menti.
            Niza sorriu, aquele sorriso cheio de meiguice e de amizade, e eu tive uma vontade enorme de saltar do meu lugar e abraçá-la e chorar junto a ela, pedindo-lhe que não me odiasse, pois jamais lhe conseguiria revelar o meu segredo. A voz de Chris despertou-me do pesadelo acordado.
            - Agora que vocês já sabem dos ataques de amnésia… talvez seja melhor explicarmos à Kiara o que ela andou a fazer nestes últimos cinco dias, não acham?
            Olhei para ele e sorri timidamente. Chris estava a ajudar-me. Ele achava que eu confiava mais nele do que nos outros todos. E talvez até tivesse razão. Chris era de confiança, eu sentia isso.
            - Pois, eu agradecia que o fizessem. - Murmurei.
            - Bem… quando acordaste no Domingo, disseste-nos que tinhas estado a pensar bem e que afinal gostavas do Peter, e que por isso não te importavas que ele te beijasse outra vez.
            Contive-me imenso para não olhar para Peter. Kalissa não facilitava as coisas, pondo os pés pelas mãos. Um ataque de amnésia não podia justificar uma mudança tão brusca de opinião. Era normal que eu continuasse a querer namorar com Peter, certo? E era por isso que eu me sentia tão nervosa, por achar que eles conseguiriam descobrir a mentira mais depressa do que eu julgava.     
            - E depois disso juntaste-te ao grupo da Mariah e foste eleita Rapariga da Claque. Tens andado a treinar com elas e tudo. - Alertou Ryan.
            - Pois, o Peter já me tinha dito isso…
            - E os Desportistas andam todos derretidos por tua causa. - Sophie revirou os olhos e depois encolheu-se perante o olhar silenciador de Peter.
            - Não posso acreditar… quer dizer, eu não queria ter feito isso… desculpem todos, a sério…
            - Não há problema, agora já sabemos o porquê de fazeres aquelas coisas. - Declarou Niza, calmamente.
            - Ainda bem que acreditam em mim.
            E antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, ouviu-se o sino da escola e todos os alunos que ainda estavam no salão de refeições se levantaram e se encaminharam para as respectivas salas de aula. Eu fui para a lição de Inglês, e apesar de ter tentando concentrar-me na matéria e no texto que estávamos a ler, a minha cabeça deambulava por imagens de Peter e da maneira como Kalissa o tinha aliciado a fazer o que ela queria.
            Tal como John tinha dito, ela era perfeita a mentir.
            Depois da aula de Inglês fomos para Educação Física, e enquanto eu seguia com Niza e Sophie para o Balneário Feminino, uma presença surgiu ao meu lado esquerdo.
            - Olá Kiara.
            Virei o rosto para olhar directamente para ela. A primeira imagem que se formou na minha cabeça foi a de uma Barbie aparentemente adorável.
            - Oi Mariah, tudo bem?
            Ela mostrou um daqueles sorrisos enternecedores.
            - Eu estou óptima. Mas estou preocupada contigo… ainda não vieste ter connosco durante todo o dia.
            Lancei um olhar alarmado para Niza e ela encolheu os ombros, sem saber como me podia ajudar.
            - Hum… pois… eu tenho estado com elas…
            - Claro, deu para ver. - Os olhos azuis-claros de Mariah semicerraram-se. - Será que vale a pena comunicar ao professor que agora fazes parte das Raparigas da Claque ou… queres desistir do cargo?
            Eu não sabia o que fazer, mas uma sensação esquisita alertou-me para o facto de Kalissa ir ficar furiosa se eu desistisse de fazer parte do grupo de Mariah, pelo que me apressei a assentir e a sorrir-lhe.
            - Claro que continuo a ser uma Rapariga da Claque. Conta comigo.
            - Óptimo. Esta noite queres ficar connosco na Sala de Convívio ou…
            - Na verdade já tinha combinado ver um filme com a Niza e a Sophie. Desculpa Mariah… pode ficar para amanhã?
            Juro que a vi cerrar as mãos em punhos antes de recuperar o auto-controlo e sorrir.
            - Claro. Então… fica bem.
            Virou-se e quase correu para os braços de Brand, o seu namorado super musculado, que me fitou intensamente. Eu tive de desviar o olhar, sentindo-me esquisita.
            - Vamos Kiara? - Perguntou Niza, pegando-me na mão.
            - Claro.
            Segui com elas até à casinha de madeira e entrei, aproximando-me do meu cabide, onde estava o meu equipamento de Educação Física. Troquei de roupa o mais depressa que pude e depois penteei-me rapidamente antes de Sophie me apressar para fora do balneário. Quando chegámos à enorme clareira relvada que era o campo de desporto, inspirei fundo. Apenas se fazia sentir uma brisa suave que me agitava os cabelos. Os Desportistas já se tinham colocado em posição. Ao que tudo indicava, aquela era a primeira aula de voleibol que nós tínhamos. A rede já tinha sido colocada no meio do campo.
            - Muito bem, façam as vossas equipas! - Clamou o professor.
            Niza e Sophie aproximaram-se de mim, bastante sorridentes.
            - Ficas connosco? - Perguntou Sophie.
            - Acho que não fará mal…
            - Óptimo! O Ryan, o Chris e o Peter também ficam. Vamos lá, estou cheia de vontade de jogar! - Cantarolou Niza.
            Segui com Sophie para o campo de voleibol e posicionei-me ao lado de Ryan que me sorriu.
            - É bom ver que voltaste à equipa.
            Corei e desviei o olhar dele, sorrindo. Agachei-me como a maioria dos alunos fizeram, colocando-me em posição de receber a bola. Eu não gostava muito de bolas a voar por cima da minha cabeça nem à volta dela, mas tive a estranha impressão de que Ryan e Chris - situado atrás de mim - não deixariam que eu me magoasse, por isso inspirei fundo e deixei que Sophie servisse. O remate forte da minha amiga fez com que a bola voasse rapidamente para o outro lado da rede e o jogo começou.
            Não era tão difícil jogar voleibol como basebol. Não era precisa muita força nem tínhamos de correr tão depressa. Mas eu ainda continuava a achar que o andebol era de todos o mais fácil.
            Consegui realizar uns quantos passes bem-feitos ao longo do jogo e o professor pareceu ficar contente. Quando a aula acabou eu sentia-me cansadíssima. Fui trocar de roupa e depois segui com Niza e Sophie para o nosso dormitório, onde esperei que elas tomassem banhos e se arranjassem e depois foi a minha vez de tomar duche e trocar de roupa.
            - Vamos jantar? Estou cheia de fome. - Disse Niza.
            Eu estava já a acabar de me arranjar por isso não demorei muito até descer com elas para o refeitório, onde me sentei ao lado de Peter, em frente a Chris, como costumava ficar na maioria das vezes.
            - Alguém tem uma ideia para o que vamos fazer a seguir? - Perguntou Chris.
            - Podemos ver um filme. - Sugeri.
            Tudo tinha de bater certo com a desculpa que eu dera a Mariah. Niza e Sophie, que tinham ouvido, apressaram-se a concordar.
            - Vai dar um filme de terror qualquer. Querem ver? - Perguntou Niza.
            Oh boa. Tinha mesmo de ser um filme de terror? O meu olhar cruzou-se com o de Peter e um sorriso perverso aflorou aos seus lábios.
            - Por mim está bem.
            Fiquei contente por ele não se ter zangado com o tema e sorri-lhe. Peter era muito mais calmo e sensato do que parecia. Depois de comermos - a comida soube-me mesmo bem, pois estava exausta da aula de Educação Física - seguimos para a Sala de Convívio, onde nos sentámos num dos conjuntos de sofás, e ligámos a televisão. Ainda faltavam dez minutos para começar o filme pelo que nos fomos instalando como sempre costumávamos ficar: Sophie sentada ao lado de Ryan num sofá com Niza encostada às pernas de Sophie e a cabeça apoiada nos joelhos dela, só que em vez de eu ficar no mesmo sofá de Peter, decidi ficar com Chris, e assim Peter ficou com a poltrona só para ele. Depois de nos termos acalmado e silenciado, o filme começou e ficámos a vê-lo pela noite dentro.
            Não era tão assustador como o filme anterior que eu vira com Peter no cinema, mas ainda assim Sophie e Niza fartaram-se de gritar quando se assustavam, o que fazia com que os rapazes se rissem à gargalhada logo a seguir.
            Uma sonolência foi-se apoderando de mim quando já passava da meia-noite. Sentia os olhos a quererem fechar-se e estava mesmo quase a adormecer quando Niza tornou a gritar histericamente, acordando-me.
            - Niza ele vem lá… olha! - Gritou Sophie, e Ryan teve de dar-lhe um encontrão para que ela se calasse.
            Peter ria-se à gargalhada mas Chris e eu mantínhamo-nos em silêncio, atentos ao filme. Mas Niza e Sophie acalmaram-se e o silêncio voltou ao grupo, pelo que eu acabei mesmo por adormecer ao lado de Chris e não me lembro de mais nada depois disso.


            Abri os olhos lentamente, estremunhada, e olhei à minha volta. Estava deitada na minha cama, com Niza e Sophie nas suas camas a dormir profundamente. Pisquei os olhos para focar a visão e tentei captar a sensação de quando Kalissa me possuía. Mas não aconteceu nada. Sorri e deixei-me cair de novo na cama, a cabeça embateu na almofada e eu fechei os olhos, sentindo o alívio e a alegria a tomarem conta de mim.
            Ainda era eu mesma.
            Deixei-me ficar deitada por mais uns minutos, até o horroroso despertador de Niza começar a guinchar a altos berros. Desta vez fui eu quem lhe deu o murro e o obrigou a calar-se. Sophie virou-se entre os cobertores, resmungando baixinho, mas eu fui forçada a levantar-me e arrastei-me até à casa de banho para tomar o duche matinal e preparar-me para mais um dia de aulas.
            O dia correu bastante bem. E o dia a seguir também. Na verdade, o fim-de-semana foi tão bom que eu consegui descansar e recuperar forças para a semana seguinte, e ainda estudar para os testes de Matemática e Biologia e Geologia. E para cúmulo de satisfação, Kalissa não interferiu no meu controlo nem por um só segundo.
            Quando eu estava mais calma tornava-se fácil proteger-me dela. Niza e os restantes membros do meu grupo estavam contentes por ver que eu já tinha voltado a ser a Kiara deles, não aquela estranha assustadora. Mas pela via das dúvidas, continuei a ir aos treinos da Claque. Na verdade não era tão mau quanto parecia, e apesar de Mariah estar sempre a pavonear-se e a bambolear-se para os Desportistas, até se conseguia aturar pacificamente. E eu conseguia atinar com as coreografias, o que me deixava mais feliz ainda.
            A semana seguinte, a minha quarta semana na Blackstone Private School, passou rapidamente mas cheia de actividade. Havia os testes, as noitadas, o estudo, os trabalhos de casa, as coreografias da Claque e o esforço descomunal que eu fazia para manter a parede de tijolos na minha cabeça, impedindo que Kalissa se soltasse. E mesmo que me sentisse a desmaiar de cansaço a qualquer instante, mantinha o sorriso na cara, tentando parecer forte no exterior. Os meus amigos mereciam esse esforço. Mereciam que eu parecesse feliz e que os compensasse por todas as coisas más que Kalissa fazia.
            Mas na noite de Sábado, uma lembrança súbita devolveu-me ao passado. Eu estava a comer com o meu grupo no salão de refeições quando subitamente me lembrei de que dia era. Parei o garfo a meio caminho para a boca enquanto os meus olhos se arregalavam. Como é que eu pudera estar tão alegre durante a última semana?!
            O rosto dos meus tios surgiu por detrás das minhas pálpebras, inundando a minha cabeça como se eu estivesse num pesadelo. Não soube o que fazer e acho que me limitei a ficar paralisada e olhar para o vazio. Sentia Niza, Sophie, Ryan, Chris e Peter à minha volta e até era capaz de adivinhar que eles estariam a perguntar-se o que se passava comigo, mas não era capaz de lhes responder. O meu corpo estava a reagir à lembrança e ao dia em que me encontrava.
            Fazia exactamente um mês que os meus tios tinham sido mortos.
            Precisamente um mês antes, àquela mesma hora, a electricidade tinha sido cortada na minha casa de Auburn, obrigando-me a abandonar a minha tia na cozinha e a correr até à saleta de entrada para encontrar uma vela. E fora nessa altura, nesse pequeno deslize que eu cometera, que ela tinha sido morta, que os assassinos tinham entrado pela janela da cozinha e lhe tinham cortado a garganta. Engoli em seco, sentindo os meus olhos a encherem-se de lágrimas. E eu tinha fugido, até ao meu quarto no piso superior da casa, desesperada por escapar. Ouvira o meu tio entrar em casa e a confusão no andar de baixo enquanto os assassinos discutiam com ele e acabavam por o matar. Lembrava-me de ter fugido pela janela, subido ao telhado e de me ter deixado lá ficar como uma cria indefesa e horrorizada. E de como fui cobarde por não descer e ajudar os meus tios.
            As memórias eram fortes, dolorosas e asfixiantes, faziam-me querer chorar mais que nunca. Eu tinha-os deixado. Tinha agarrado no máximo de coisas que pudera e fugido, deixando os seus corpos para trás. Tinha chamado um táxi e escapado até ao aeroporto. Depois John tinha-me ido buscar e levara-me para ali.
            Nessa noite fazia exactamente um mês que eu chegara à Blackstone Private School. Um mês atrás, eu não poderia dizer que alguma vez tivera amigos. E eram esses mesmos amigos que agora me olhavam intensamente, como se achassem que eu podia desatar a chorar a qualquer momento.
            Um mês.
            Tanta coisa que mudara durante esse tempo… a minha vida tinha dado uma volta gigantesca e eu ainda não tinha controlo sobre mim mesma. Kalissa estava sempre a soltar-se, a interferir, a arranjar confusões. John prometera proteger-me e estava a cumprir bem a sua promessa. Por que é que eu nunca conseguia cumprir as promessas que fazia?
            - Kiara!
            A voz ansiosa de Chris acordou-me do pesadelo, fazendo-me piscar os olhos para reprimir um ataque de choro.
            - Desculpem. - Foi tudo o que disse.
            Depois levantei-me, cambaleante, e corri para fora do salão de refeições, sentindo que a minha cabeça ia explodir de dor. Queria voltar àquela casa, empunhar uma faca e matar os assassinos dos meus tios antes que eles pudessem sequer pensar em magoá-los. Mas agora era tarde. Tarde de mais para muita coisa.
            Cheguei a uma grande porta de madeira e bati apressadamente, com as mãos trémulas pelos nervos. A voz sensata deu-me ordem que entrasse. Abri a porta e passei. Ele estava à minha espera.
            Sem pensar muito naquilo que fazia, apenas movida pela urgência avassaladora que sentia, corri para os seus braços e desatei a chorar.
            John afagou-me os cabelos e sussurrou-me que ia ficar tudo bem. Deixou-me chorar e embalou-me como se eu fosse uma criança pequenina, assustada e ansiosa, que precisava do pai para a consolar. John preenchia na perfeição esse papel, como se eu sempre tivesse estado destinada a juntar-me a ele. John cumpria a promessa que fizera ao meu tio na perfeição.
            - Eu sei que esta noite é difícil para ti, Kiara.
            Assenti e ele continuou a embalar-me lentamente. Quando eu me consegui acalmar um pouco, levou-me até à cadeira em frente à sua secretária e fez-me sentar lá, tirando-me o cabelo da cara e sorrindo compreensivamente.
            - Lembraste-te dos teus tios?
            Aquiesci e ele desviou o olhar do meu, como se não suportasse ver toda a tristeza que brotava deles.
            - Desculpe por ter vindo até aqui mas… eu precisava…
            - Não há problema nenhum em teres vindo.
            E eu cravei o meu olhar no seu. John conseguia manter-se calmo, ponderado e pensativo, mesmo em ocasiões como aquelas. Mesmo que me visse chorar à sua frente ele tinha de parecer controlado o suficiente para me conseguir acalmar. Se ele tivesse um alter-ego como eu não deixaria que ele se soltasse tantas vezes. Todo aquele controlo faria com que ele se mantivesse sempre dono do seu corpo.
            - O senhor é tão parecido com o meu tio. - Murmurei.
            Os seus olhos arregalaram-se de espanto. Ele devia levar aquilo como um grande elogio.
            - Achas mesmo?
            - Sim. Não admira que ele lhe pedisse para tomar conta de mim. Ele sabia que eu ficaria em segurança junto a si.
            Ao fim de uns segundos, John sorriu e abraçou-me calmamente.
            - Eu faço tenções de cumprir a minha promessa. Enquanto quiseres a minha ajuda eu estarei aqui para ajudar.
            - Obrigada.
            E fechei os olhos, deixando-me permanecer em silêncio por tempos indefinidos. Quando por fim John suspirou e se afastou um pouco eu abri os olhos e fixei-os no seu rosto.
            - Talvez esteja na hora de me ir embora.
            Sentia-me mais calma, mas ainda assim, precisava urgentemente do meu amuleto. John assentiu e levantou-se, rodeando a secretária para se sentar na sua grande e confortável poltrona.
            - Vai, Kiara. E espero que passes bem a noite.
            Levantei-me, sorri-lhe tristemente e depois saí dos seus aposentos, encaminhando-me para a Sala de Convívio, onde sabia que os meus amigos estariam, sentados nos sofás a ver televisão e a pensar o que raio se teria passado comigo daquela vez.
            Enquanto descia as escadas e atravessava os corredores, pensei numa boa desculpa para eles não desconfiarem.
            E que tal se lhes dissesse que tivera outro ataque de amnésia? Não era uma má desculpa, e justificava bastante bem o meu assomo de pânico. Sorri, mas as lágrimas continuaram a escorrer pela minha cara. Não tinha forças para mentir mais. Só me apetecia começar a falar sem parar e a dizer-lhes a verdade. Mas ainda era cedo de mais para isso.
            Quando cheguei junto do meu grupo, Niza e Sophie levantaram-se logo e abraçaram-me com força, tanto que eu quase não conseguia respirar.
            - Oh Kiara, pregaste-nos cá um susto!
            - O que aconteceu?
            - O que é que te deu para ficares assim?
            - Foi alguma coisa que nós dissemos?!
            Inspirei fundo e abanei a cabeça.
            - Não foram vocês, estejam descansadas.
            Depois avancei até me sentar entre Chris e Ryan. Os meus dois talismãs, lado a lado. Fechei os olhos e dei uma mão a cada um deles. Senti a calma a invadir-me. Aquilo era realmente esquisito, como se eles tivessem poderes paranormais quaisquer que me acalmavam imediatamente.
            - Ela teve outro ataque de amnésia, malta. - Disse Chris, a voz tensa.
            Abri os olhos para olhar para o seu rosto pensativo e assenti.
            - Foi isso mesmo.
            Apesar de a minha voz soar mesmo mal, todos acreditaram.
            - Oh Kiara… não me lembrei disso, desculpa… - Disse Niza.
            Acocorou-se à minha frente, pegando nas minhas mãos. Os seus olhos verdes cintilavam de genuína preocupação e senti-me mal por lhe ir mentir mais uma vez.
            - Eu assustei-me porque… era suposto eu estar na cama… que horas são? - Fingi estar mais assustada que triste e eles acreditaram.
            Afinal de contas, a minha capacidade para mentir era quase tão boa como a de Kalissa e o corpo e a cara eram as mesmas, logo, nós fazíamos as mesmas expressões faciais quando mentíamos. Não havia como duvidar.
            - Acabámos de jantar, ainda não devem passar das nove da noite.
            - Oh não… eu pensava que eram duas ou três da manhã…
            - A sério? Da manhã de ontem? Hoje é Sábado.
            Quando Peter disse aquilo, a ideia do mês passado entranhou-se cada vez mais em mim, fazendo-me sentir novamente vontade de chorar. Apertei as mãos de Chris e Ryan com mais força.
            - Eu ainda pensava que era a madrugada de hoje… desculpem.
            - Não faz mal. Nós pensámos que tu tinhas ficado triste por te lembrares que entraste para cá há um mês, mas depois não entendíamos como podias estar triste, afinal de contas tens andado tão feliz… - Disse Sophie.
            Ela tinha razão. Aquelas mudanças temperamentais tão bruscas deviam confundir qualquer um.
            - Eu não estou triste por ter vindo viver aqui para o castelo. Foi a melhor coisa que já me aconteceu.
            Não estava a mentir totalmente. Eu sentia-me bem ali dentro, segura e…feliz. Não queria estar em mais lugar nenhum. Excepto se os meus tios ainda estivessem vivos, claro. Nesse caso eu quereria ficar com eles, mas como eles tinham morrido, a Blackstone Private School era o melhor lugar para mim.
            - Nós também gostámos que tivesses vindo, Kiara.
            A intensidade com que Chris disse aquilo fez-me olhá-lo directamente nos olhos, que pareciam pedras preciosas, turquesas verdadeiras, que brilhavam calmamente à luz dos candeeiros medievais.
            - Desculpem pela minha reacção. Não pensem que estou triste por esta data. Aliás… estou muito feliz.
            - Pois, ainda bem. Sabes o que é que vinha mesmo a calhar? Uma festa!
            Fiquei impressionada com a sugestão de Sophie.
            - Uma festa? - Peter também estava perplexo.
            - Sim! Por que não vêm todos dormir no nosso quarto hoje? Ficávamos acordados pela noite dentro! A ouvir música e a rir e a contar histórias de terror como fazemos nos aniversários. Vá lá! É uma boa ocasião para comemorar!
            Eu não queria mesmo nada uma festa naquela noite. Não estava com espírito para gargalhadas nem sorrisos. A coisa que mais me apetecia fazer nesse momento era enfiar-me na cama e chorar pela madrugada fora. Mas um nó formou-se na minha garganta só de imaginar em desfazer os sorrisos entusiasmados nos rostos de Niza e Sophie. Elas não mereciam que eu as aborrecesse. Elas deviam estar sempre assim, sorridentes e alegres. Até Ryan e Peter já estavam a entusiasmar-se com a sugestão. Eu entendi que não podia, não tinha o direito, de os obrigar a não fazer a festa.
            Mas havia alguém no meio do grupo entusiasmado que me compreendia, alguém que conseguia entrar na minha cabeça como mais ninguém, que me percebia quando ninguém o conseguia fazer. Os seus olhos cravaram-se nos meus e a sua voz chegou até mim suficientemente baixinha para que os outros não a ouvissem.
            - Se não quiseres comemorar, eu arranjo maneira de os fazer desistir da ideia.
            Abanei a cabeça em negação. Apreciava aquela compreensão mas não queria que Chris destruísse o alvoroço de Niza, Sophie, Ryan e Peter. Eles tinham direito a divertir-se de vez em quando.
            - Não. Deixa estar. Eu quero esta festa.
            - Estás a mentir.
            Inspirei fundo. Se aquele dom de ler pensamentos se aprofundasse com o passar do tempo, Chris seria capaz de descobrir as minhas mentiras dali a pouco tempo. Eu tinha de arranjar uma técnica para impedir que ele me entendesse assim tão bem.
            - Chris, a sério. Vamos comemorar. Afinal de contas… vai ser a primeira festa que eu faço convosco. Com amigos a sério.
            Um sorriso de júbilo rasgou os seus belos lábios carnudos e eu soube que, mesmo que tentasse não mostrar, Chris também queria aquela festa.
            - Então vamos a isto.
            Niza e Sophie puseram-se logo de pé, começando a tagarelar sobre o que podíamos fazer, enquanto eu deixava que Chris me guiasse escadas acima até ao meu dormitório, com Peter e Ryan junto às raparigas. Eu e o meu acompanhante deixámo-nos ficar mais atrás, e eu tentei mesmo, quase em desespero, arranjar uma maneira de fingir que me ia divertir durante o resto da madrugada.
            - Tu tiveste mesmo um ataque de amnésia ou era uma maneira de impedir que eles fizessem perguntas?
            Engasguei-me e desatei a tossir como uma mentirosa principiante que se deixa apanhar nas teias de um detective experiente.
            - Não… eu tive mesmo um ataque…
            - Hum, está bem então.
            Ele desviou o olhar do meu e não tive a certeza se acreditava em mim ou não, mas não tive forças suficientes para mentir mais.
            Entrámos no quarto e Sophie fechou a porta. Estava tudo às escuras e eu dirigi-me à janela para afastar os cortinados. Mas isso não melhorou nada: estava uma noite de lua nova, não havia um só ponto luminoso no céu, e eu sentia-me tal e qual aquela visão de escuridão: sombria, sem qualquer luz dentro de mim.
            - Kiara? Anda! - Chamou Peter.
            Virei-me, deixando para trás aquela sedutora visão de Trevas, e fui sentar-me junto a ele em cima da minha cama. Sophie estava no centro do quarto e dirigiu-se ao seu armário, abrindo-o. Eu nunca tinha revistado o seu roupeiro por isso nunca me passara pela cabeça que ela tivesse aqueles CD's todos lá dentro. Ryan estava de saída do quarto.
            - Vou buscar a aparelhagem, já venho. - Disse ele.
            Fechou a porta e ouvi os seus passos apressados pelo corredor fora. E então comecei a pensar como raio é que eles pensavam deixar a música ligada pela manhã fora com os guardas a inspeccionar os corredores. De certeza que não era permitido fazer barulho excessivo depois da uma da manhã.
            - Niza… nós podemos ter a música ligada até que horas?
            - Só até à uma da manhã. - Disse ela, um pouco abatida. - Mas depois disso arranjamos outra maneira de nos divertirmos, vais ver.
            Eu assenti e recostei-me junto a Peter, que passou o braço em volta dos meus ombros.
            Durante essa última semana ele tinha-se portado lindamente. Não fizera nenhum comentário mauzinho e a nossa relação tinha avançado para um bom ponto: dois amigos que se preocupam e querem o bem um do outro. Nada mais, uma relação simples e lisa como a superfície de um lago pela manhã.
            Entretanto Ryan voltou com a aparelhagem, que colocou sobre a nossa secretária. Sophie aproximou-se dele e passou-lhe um CD para as mãos. Não tive tempo de vislumbrar o título do CD, mas o sorriso provocador nos lábios de Ryan fez-me entender que aquilo trazia memórias a ambos. Sophie aproximou-se de Niza e puxou-a para fora da cama, enquanto a música começava a soar pelo quarto.
            Eu não reconhecia o cantor, mas a música entrou em mim como uma droga, e senti logo uma vontade louca de ir dançar para o meio do quarto. Peter compreendeu logo isso, embora eu não tenha entendido como, e levantou-se, pegando na minha mão.
            - Danças comigo? - Perguntou ele, sorrindo.
            Eu não consegui simplesmente dizer que não e levantei-me, seguindo com ele. Peter puxou-me para si e começou a dançar, embalando-me consigo. Niza já tinha ido buscar Chris e Ryan ficou com Sophie.
            E durante cerca de meia hora, dançámos uns com os outros sem parar. Eu sentia-me a meio de um bom transe, a música fazia-me dançar e eu não conseguia parar, como se as minhas pernas se movessem por vontade própria. Chris e eu dançámos mais que quatro vezes. Ele dançava tão bem! Dava-me vontade de nunca sair dos seus braços. Ryan também era um bom dançarino, mas Sophie quase que o requisitou permanentemente para si. Niza e eu também dançámos algumas vezes. Ela também era uma óptima bailarina e aquela foi a primeira vez que pude apreciar a dança dela.
            Qualquer sentimento de tristeza, de amargura, fugiu de mim como se eu tivesse sido invadida por uma onda de alegria louca. A certa altura, fechei os olhos e deixei que Peter me embalasse enquanto eu me perdia nos seus pensamentos.
            Os meus tios quereriam que eu os recordasse com alegria, lembrando-me dos bons momentos que passara com eles. Não queriam que eu chorasse eternamente por eles. E eu prometi a mim mesma que faria os possíveis para não chorar por eles daí em diante, apenas recordá-los com alegria.
            E continuei a dançar até à uma da manhã, altura em que o sino da escola tocou e fomos obrigados a desligar a música. Os meus pés doíam tanto que me sentei em cima da cama e me deixei cair para trás, cansada.
            - Uau! Kiara, tu danças mesmo bem! - Sorriu Niza, sentando-se na sua cama e ficando de frente para mim.
            Sorri e fechei os olhos. Estava demasiado exausta para me conseguir concentrar noutra coisa qualquer, e apesar de a madrugada ainda agora ter começado, eu já sentia vontade de dormir. Mas Ryan não tinha vontade absolutamente nenhuma de fazer isso. Sentou-se no tapete fofo do chão, com Sophie ao seu lado, e chamou-nos.
            - Eh, vá lá, não vão já dormir todos pois não?
            Dei-me por vencida e Chris arrastou-me consigo até ao chão. Sentámo-nos todos em círculo e eu apoiei as costas na cama para poder encolher as pernas e rodeá-las com os braços.
            - Ora bem, quem quer começar? - Perguntou Peter.
            - Posso ser eu! - Disse Sophie, entusiasmada.
            Eu fixei o olhar nela. A luz fraca do candeeiro de mesa-de-cabeceira mal iluminava o quarto e espelhava no rosto dela algumas sombras misteriosas. Ou talvez eu só as visse por estar cheia de sono.
            - OK… então, havia uma casa no cimo de um monte. Uma casa já velha e a cair de podre… e não morava ninguém nela…
            Ela continuou a contar a história mas eu não prestei nenhuma atenção. Os meus olhos queriam fechar-se e eu lutava para os manter abertos. Chris, sentado ao meu lado, ouvia tudo com uma atenção hipnotizada. Aliás, toda a gente parecia beber as palavras de Sophie com sofreguidão, só eu me mantinha a leste daquele lugar.
            Lembrei-me de Kalissa. Ela teria logo reclamado as atenções para si, sugerido que podia ser ela a contar a história de terror. E algo dentro de mim me alertou para o facto de saber perfeitamente qual seria a história que ela contaria. Contive as náuseas. Ela teria descaramento suficiente para contar a história da morte dos meus tios ali, diante dos meus amigos?
            Descaramento ela tinha, de certeza absoluta.
            Os meus olhos fecharam-se finalmente. Ela não ia conseguir afastar-me do controlo. Eu não estava descontrolada naquele momento, nem assustada nem ansiosa. Na minha cabeça as imagens da dança com Chris e Peter estavam demasiado marcadas para ela conseguir furar a camada de alegria que me enchia. Por isso deixei-me cair no sono e desejei não ter nenhum pesadelo com os meus tios.


            Abri os olhos. A escuridão à minha volta era demasiado intensa. Quando consegui adaptar-me à falta de luz, e com a ajuda dos braços, fui capaz de me erguer do chão. Por que razão é que eu estava deitada na relva? Lá em cima o céu estava negro como breu, sem nuvens nem estrelas e nem sequer se via a lua. Negrura absoluta. No entanto, eu via perfeitamente. Não precisava de luz para me guiar, os meus olhos viam tão bem na luz como nas trevas, como se eu tivesse visão de gato ou algo parecido. Suspirei e pus-me de pé.
            O que é que eu estava a usar? Um vestido de princesa? Porquê? A saia era grande e chegava-me até aos calcanhares, o vestido não tinha alças e era de um suave cetim negro como o céu. Eu estava descalça. Enquanto observava espantada o vestido que trazia, ouvi uma voz a chamar-me. Uma voz inconfundível. Olhei à minha volta, tentando encontrá-lo, e lá consegui. Estava lá ao fundo, do outro lado do campo de desporto, da enorme clareira a céu aberto. Eu sorri ao avistá-lo. Ele usava um smoking preto que condizia impecavelmente com o vestido que eu trazia. Os seus lábios reproduziram o mesmo sorriso encantado que eu tinha.
            - Vem, Kiara.
            E eu, sem pensar duas vezes, lancei-me a correr até ele. Mas a distância aumentava e aumentava e parecia que eu nunca mais conseguia alcançá-lo. Finalmente, ele abriu os braços e eu choquei contra o seu peito musculado e quente. Depois ele abraçou-me com força e eu enterrei a cara na curva do seu pescoço e do seu ombro e suspirei, para de seguida inspirar o seu perfume delicioso com sofreguidão. Ele cheirava tão bem…
            - Dás-me a honra desta dança?
            E sem saber bem como ou de onde viera o som, uma suave melodia de baile começou a ouvir-se como música de fundo, e ele colocou uma mão na minha cintura enquanto com a outra agarrava a minha mão, puxando o meu corpo para junto do seu, e começámos a dançar. Eu sabia a coreografia, tal como ele, pelo que não foi difícil mover-nos em sincronia absoluta. E eu estava maravilhada por estar ali a dançar com ele, sem conseguir encontrar algo que me afastasse da bolha de felicidade em que estava inserida.
            Rodopiámos ao som da música, que assim que chegava ao fim voltava imediatamente ao início como se carregássemos no botão de repetição. E eu dancei com ele pela noite dentro, descalços na relva suave e bem arranjada da clareira, de olhos cravados um no outro. E eu nunca me tinha sentido tão bem na vida como naquele momento.

           
            Ofeguei enquanto despertava, sentando-me rapidamente na cama.
            O que é que me tinha despertado afinal? Não fora um pesadelo. Pousei a mão sobre a zona do coração e tentei captar alguma presença recente de Kalissa. Nada. Estava tudo tal e qual quando eu adormecera.
            Olhei à minha volta e espantei-me com o cenário.
            Ryan e Sophie dormiam abraçados na cama dela. Niza estava deitada ao contrário na sua cama, quase a cair dela abaixo, com um braço a pender para fora. Peter estava no tapete do chão, com a cabeça perto da mão de Niza. E Chris estava deitado ao meu lado, virado de costas para mim, a dormir profundamente. Mordi o lábio inferior quando me apercebi que tinha sido só um sonho. Ele estava com a roupa do dia-a-dia e não com o smoking que eu imaginara no sonho.
            Deixei-me cair para trás, suspirando de alívio. Que raio de sonho para ter logo naquela noite. Fechei os olhos e as imagens da minha dança com Chris encheu-me o pensamento. Por que é que tinha sonhado com isso? Talvez por ter estado a dançar com ele grande parte do serão. Talvez…
            - Kiara?
            Ele virou-se na cama para ficar de frente para mim e poder olhar-me directamente. Virei a cabeça e olhei para ele, sentindo-me a corar imenso.
            - Olá Chris.
            - Estás bem?
            - Acho que sim…
            A minha voz saía embargada pelo espanto. Ele parecia tão calmo, com o cabelo despenteado e os olhos semicerrados pela desconfiança, um ar ensonado adorável que o fazia parecer um simples jovem acordado a meio de uma noite a dormir profundamente. Sorri perante aquela visão.
            - Acordaste-me. Estavas a ter algum pesadelo?
            - Não, nem por isso… mas o que fazes aqui deitado ao meu lado?
            - Como podes ver as outras camas já estão ocupadas. - Riu-se ele, baixinho para não acordar os outros.
            Revirei os olhos e aninhei-me, tapando-me até ao pescoço.
            - Desculpa ter-te acordado. Volta a dormir.
            - Vou ver se consigo.
            Fechou os olhos e caiu no sono pouco tempo depois. Mas eu não consegui adormecer. Fiquei a olhar para ele durante o resto da manhã, observando as suas feições calmas enquanto dormia. Parecia um anjo.
            E tive a certeza que, nessa madrugada, deitada ao lado de Chris a vê-lo dormir, algo novo nasceu dentro de mim.