sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Capítulo 17


Reviravolta






            Sentia-me esquisita. Não era normal sentir-me assim ao acordar. Mexi-me devagar, porque aquela sensação de cansaço não era nada agradável. Depois abri os olhos, tentando entender o que se passava.
            O que vi deixou-me em estado de choque.
            Eu não estava no meu quarto. Apesar de aquela divisão ser muito parecida com o meu dormitório - tinha as três camas, as mesas-de-cabeceira com os candeeiros em cima, os armários, a janela de parapeito largo, o tapete largo no chão e os cortinados espessos - os tons não eram os mesmos. Ali, o tom mais predominante era o azul e o castanho. Pisquei os olhos, tentando entender se estava a meio de alguma espécie de pesadelo. Depois fiz forças nos braços para me conseguir sentar na cama, ainda a tentar descobrir onde raio eu estava.
            De repente, a porta que dava acesso à casa de banho abriu-se e do outro lado surgiu um rapaz em tronco nu, com uma toalha enrolada em volta da cintura e um ar completamente despreocupado e olhou para mim, sorrindo de modo provocador. Um grito escapou-se por entre os meus lábios quando reconheci o rapaz.
            Era Brand.
            O que é que eu fazia no quarto de Brand?! Deitada na cama dele? O que é que ele fazia naquela figura, à minha frente?
            Comecei a respirar com dificuldade, enquanto toda a informação se juntava na minha cabeça. Entretanto, Brand avançava na minha direcção, acabando por se sentar ao meu lado na cama, confuso com a minha reacção aterrorizada. As minhas mãos começaram a tremer.
            - Olá boneca. Estás bem?
            Eu queria gritar outra vez, tal era a confusão dentro de mim. Aquilo não podia estar a acontecer-me… fugi da cama, apelando a todas as minhas forças para conseguir correr até ao outro extremo do quarto. Brand ficou a olhar chocado para mim.
            Kalissa.          
            A culpa era dela, de certeza. Quanto tempo ela teria estado a dominar-me desta vez?! Não podia ter sido apenas um dia. Um dia não bastaria para que Brand a convencesse a dormir com ele.
            - Kiara, o que é que tens? - Perguntou Brand, curioso e preocupado.
            Era estranho que ele tivesse aquele tom tão ansioso na voz, que normalmente se apresentava autoritária e mostrando-se superior, convencida. Naquele momento, era outro Brand que estava à minha frente, e parecia genuinamente preocupado com Kalissa. Só que ele não desconfiava que as nossas personalidades já tinham trocado novamente. Inspirei fundo, sentindo-me a empalidecer e a tremer mais a cada segundo que passava. Brand levantou-se, atravessou o espaço que nos separava em três grandes passadas e parou à minha frente, encurralando-me contra a parede atrás de mim.
            - O que é que tens? Explica-me!
            Comecei a gaguejar, sem saber o que devia fazer. Não queria que ele descobrisse o meu segredo, mas ao mesmo tempo, precisava de o alertar para o facto de já não ser quem ele julgava que eu era. Mas ele não me deu tempo para pensar em nada. Agarrou o meu rosto entre as suas mãos grandes e quentes e puxou-o para o seu, beijando-me fortemente, com tanta intensidade que eu fiquei sem reacção.
            Ainda não sabia bem como, mas havia de fazer Kalissa pagar por tudo aquilo…
            Brand puxou-me de encontra si, pegando-me ao colo, enquanto me beijava com cada vez mais veemência, os seus lábios esmagavam os meus de um modo ao mesmo tempo violento e bom, e eu senti-me terrível por estar a gostar dos seus beijos. Aquilo não devia ser sim. Eu jamais devia ter deixado que Kalissa me metesse naquela confusão toda. Quando consegui ganhar forças no meio do choque, coloquei as mãos sobre o peito de Brand e empurrei-o para trás. Ele ficou atarantado com a minha reacção, sem saber o que devia fazer.
            - Brand, pára. - Vociferei, tentando dar à minha voz um tom definitivo.
            Ele não estava a entender bem onde eu queria chegar, mas pelo menos obedeceu. E foi ao ver os meus braços estendidos a separar o seu corpo do meu que me apercebi que…
            Eu estava diferente.
            Consegui descolar as costas da parede e avancei dois passos para a frente, enquanto observava, horrorizada, o estado do meu corpo. Fiquei ainda pior ao perceber que estava só em roupa interior à frente de Brand, mas nem tive muito tempo para me debater sobre isso, pois os meus braços davam-me muito mais medo.
            Avancei até à casa de banho do quarto e observei-me ao espelho de rosto que estava colocado acima do lavatório deles, tal como no meu dormitório. O que vi deixou-me tão assustada que gritei bem alto, quase ferindo os meus próprios tímpanos.
            Aquela não era eu.
            A minha pele tinha ganho um tom esbranquiçado, próprio de quem está muito doente, e os meus lábios pareciam inchados e rachados em vários locais, como se eu os estivesse constantemente a morder. A magreza que eu apresentava era tal que até fazia confusão como eu ainda me conseguia aguentar em pé. Parecia que a minha pele fora marcada com tatuagens azuis, que formavam um padrão entrelaçado ao longo do meu pescoço, ombros, braços e por aí abaixo, um padrão que só podia corresponder a uma coisa: o circuito que as veias formavam no meu corpo. Engoli em seco, sentindo vontade de vomitar. As minhas veias estavam tão visíveis debaixo daquela pele quase transparente e desmaiada que eu parecia um extraterrestre. A magreza fazia com que elas sobressaíssem mais ainda. A pele do meu rosto estava tão esticada que as maçãs do rosto pareciam duas montanhas em comparação com o resto da face, e os olhos estavam escurecidos e encovados acima de umas olheiras muito profundas e roxas, que condiziam com o padrão de tatuagens formadas pelas veias. No total, eu parecia uma zombie. O meu cabelo estava baço e emaranhado como se não fosse penteado há muito tempo. Assustei-me tanto com o meu reflexo no espelho que nem quis ver o resto do corpo, que de certeza estaria igual. Comecei a tremer, tal era o choque daquela visão. Aquele par de olhos baços, cujas pupilas pareciam as de um gato, fitava-me com incredulidade. Era como se eu acabasse de nascer e me visse pela primeira vez.
            Kalissa.
            O que fizera ela?! Como é que ela fizera para deixar o meu corpo naquele estado?! Ela estava a meio de alguma greve de fome (demasiado duradoura) ou de um plano para me levar à exaustão física e mental (que estava a resultar a olhos vistos)?!
            - O que foi Kiara? Dói-te alguma coisa? - Perguntou Brand.
            Ele entrou na casa de banho, colocando-se atrás de mim e rodeando a minha cintura com os seus braços musculados como os de um lutador de boxe. Eu queria falar mas não era capaz. Estava tão apavorada que mal tinha ar para respirar. As lágrimas começaram a escorrer pela minha cara abaixo e Brand surpreendeu-se ao ver-me soluçar sem controlo.
            - OK, já chega, agora vais-me explicar o que se passa.
            E virou-me de frente para si, com força. Olhei fundo naqueles olhos castanhos, da cor do chocolate, que pareciam semicerrados de desconfiança.
            - Brand… isto está errado…
            Até a minha voz estava diferente. Estava gasta, rouca, mudada para muito pior do que aquilo que eu me lembrava. Definitivamente, não passara só um dia ou dois desde que Kalissa ganhara controlo do meu corpo. Aquela mudança tão profunda precisava de muito mais tempo.
            - O que é que está errado? - Ele estava espantado com o meu estado.
            - Tu… eu… o meu corpo…
            Eu chorava tanto que mal conseguia falar. Brand continuou à espera que eu explicasse melhor mas eu não conseguia acalmar-me.
            - Está errado? E só agora é que te apercebeste disso?
            - Agora?
            Eu precisava urgentemente de saber quanto tempo tinha passado. Mas não podia irritar Brand nem levá-lo a desconfiar que algo de mal se passava. Mas por mais que eu pensasse o plano não se formava na minha mente aterrorizada e a cabeça doía imenso.
            - Ouve, deves estar apenas a precisar daquilo. Anda comigo, vai tudo melhorar daqui a pouco.
            Passou o braço quente em volta dos meus ombros trémulos e puxou-me consigo até ao quarto, fazendo-me sentar em cima da sua cama. Beijou-me com carinho (se bem que as carícias de Brand não se podiam considerar assim tão românticas ou doces como as de Chris, nem por sombras) e afastou-se para ir ao seu roupeiro buscar algo. Tirou de lá uns jeans meus e uma camisola de manga comprida, mas que não era muito quente. Fiquei espantada por ele ter roupa minha no seu quarto mas preferi nem saber o porquê. Passou-me a roupa com um sorriso.
            - Veste-te.
            Eu não tinha forças nem capacidade para lutar contra a sua ordem pelo que me apressei a vestir. As minhas pernas estavam tão magras e as veias tão visíveis quanto da cintura para cima. Suspirei e deixei que as lágrimas continuassem a escorrer pelo meu rosto abaixo. Passava-se algo de muito, muito grave, e eu não fazia ideia do que era.
            Quando acabei de me vestir, Brand surgiu à minha frente com um copo de água e três comprimidos pequenos na palma da sua mão. Eu fiquei a olhar inquisitoriamente para ele. O que seriam aquilo? Aspirinas? Ou outro medicamento qualquer que atenuasse a minha dor de cabeça?
            Brand sentou-se ao meu lado na cama, puxando-me para si e fazendo-me sentar ao seu colo, e depois passou-me o copo de água para as mãos.
            - O que é isso? - Perguntei, com a voz embargada.
            Ele revirou os olhos e eu tive a certeza que Kalissa devia saber a resposta na ponta da língua.
            - A tua salvação, claro. Vais tomar ou não? Já não suporto mais esse teu choro pegado. - Resmungou.
            Eu não sabia o que fazer. E se aquilo fosse algo de mal? Depois pensei que já não me podia deixar pior do que eu estava naquele momento, por isso mais valia tomar. Peguei nos comprimidos, coloquei-os todos ao mesmo tempo na boca e bebi a água toda que estava no copo. Brand sorriu provocadoramente ao ver que eu seguira o seu conselho. Mas eu não estava mais calma.
            - Brand… eu preciso de ir ao meu quarto…
            - Este é o teu quarto agora. O que é que queres ir fazer ao outro?
            Pisquei os olhos para dissipar as lágrimas. Com que então Kalissa tinha-se mudado definitivamente para o quarto de Brand. Então…
            O que teria acontecido entre ela e Chris?!
            O medo que aquela víbora tivesse feito algo de mal com o meu namorado fez-me levantar da cama de Brand num pulo, correndo até ao armário, junto do qual estavam os meus ténis, e comecei a calçá-los com rapidez.
            - Onde é que vais?
            - Já te disse que vou ao meu quarto! - Tentei que a minha voz saísse forte e determinada mas as lágrimas dificultavam imenso essa tarefa.
            - Faz como quiseres, mas depois não venhas a chorar porque as tuas antigas amiguinhas discutiram contigo.
            Fiquei paralisada quando ouvi aquilo. Tão paralisada que o meu coração até começou a bater mais devagar, eu sentia-o na perfeição, enquanto o meu olhar atormentado se fundia com o de Brand.
            - Elas… o quê?!
            - Oh sinceramente Kiara, hoje acordaste com amnésia ou quê? - Resmungou Brand.
            Eu queria ripostar, dizer que elas não me odiavam, mas depois pensei que tinha de haver uma maneira melhor de dar a volta a Brand para o obrigar a explicar-me o que se passava.
            - Que dia é hoje? - Perguntei, tentando passar um ar confuso. Não custou assim muito, uma vez que eu estava completamente desnorteada.
            - Dia 4 de Dezembro, claro.
            Os meus olhos arregalaram-se de espanto. O queixo descaiu-se e eu mal conseguia falar.
            4 de Dezembro.
            A última vez que eu fora eu mesma tinha sido… no dia 15 de Novembro. Oh não… três semanas inteiras sob o comando de Kalissa…
            Então era normal que eu estivesse naquele estado. Ela tivera tempo suficiente para me deixar assim. Tempo suficiente para fazer com que as minhas melhores amigas a odiassem, tempo suficiente para conseguir mudar-se para o quarto de Brand, tempo suficiente para começar a dormir com ele.
            Contive os vómitos violentos que me assolaram naquele momento e deixei-me cair de joelhos no chão, a tremer por todos os lados, chorando sem parar. Aquilo não era justo. Não devia ser possível.
            - Kiara! - Brand precipitou-se na minha direcção, amparando-me nos seus braços musculados e fortes e puxando-me de encontra o seu peito.
            - O que é que… aconteceu… eu não me lembro… oh não…
            Pronto. Acho que ele entendeu que eu estava com amnésia. Na realidade, ele não parecia ser muito inteligente. Fixou o olhar aturdido no meu e engoliu em seco, enquanto procurava uma maneira de lidar com o meu ataque súbito.
            - Mas… como é que não te lembras… do que aconteceu?!
            Abanei a cabeça em negação, sentindo que o mundo me caía aos pés e que eu sucumbiria dentro de pouco tempo.
            - Kiara… qual é a última coisa que te lembras? - Perguntou, confuso.
            - Do dia… 15 de Novembro… mais nada…
            Os seus olhos arregalaram-se de espanto enquanto ele tentava entender o que me acontecera. O pânico era visível naquelas feições duras que agora se tinham alterado para as de um namorado preocupado e ansioso. Até era estranho ver Brand mudado daquela maneira. Nem conseguia distinguir o capitão da equipa de basebol por detrás daquele rosto de rapaz assustado.
            - O quê? Três semanas que desapareçam da tua cabeça?!
            Fechei os olhos, porque a minha visão estava a ficar nublada. O que é que eu fazia agora? Como é que o convencia a deixar-me ir embora?
            Eu tinha de corrigir os erros de vinte e um dias inteirinhos, e bem depressa, para ainda ter alguma hipótese de recuperar as minhas amigas.
            - Brand, o que é que aconteceu? Recorda-me, por favor.
            Ele não respondeu ao início, mas depois puxou-me mais para si, enterrando a cara no meu cabelo.
            - Bem… a partir desse momento tu passaste a gostar de mim… e começámos a andar, estás a ver… e tu vieste dormir para aqui comigo e tudo. Acabaste com o Chris e ficaste comigo. E depois viste o Allan a drogar-se e… quiseste experimentar… eu nem tentei deter-te, tu estavas mesmo a precisar… e foi mais ou menos isso que aconteceu nestas duas semanas…
            O ar não conseguia entrar nos meus pulmões.
            Por mais que eu tentasse respirar, não conseguia. Era impossível passar por cima daquilo.
            Droga?!
            Senti uma raiva tão grande por Kalissa naquele momento que me apeteceu arrancá-la de dentro de mim, mais do que nunca antes tinha sentido e de uma vez por todas, mas isso era impossível. Ela ia continuar dentro de mim para sempre. Por isso limitei-me a deixar o meu corpo acordar do choque. Então era por causa da droga que eu tinha ficado naquele estado. Os comprimidos que Brand me dera deviam ser uma droga qualquer. Limpei as lágrimas, sentindo as mãos a tremer mais que nunca. Onde é que eu estava metida? Como é que saía daquela situação?!
            - Precisas de alguma coisa? - Perguntou ele, tirando-me o cabelo da testa suada pela exaltação.
            - Preciso.
            Levantei-me, apelando a todas as minhas forças para me pôr de pé, e afastei-me de Brand, que ficou no chão a olhar para mim, incrédulo.
            - Deixa-me ir Brand. Eu vou resolver isto.
            E saí do quarto, não me preocupando se ainda arranjaria mais problemas por causa daquilo ou não. Havia uma pessoa com a qual eu precisava urgentemente de falar, antes de encarar Niza, Sophie, Ryan, Peter ou Chris. Uma pessoa que me ajudaria independentemente dos erros que eu cometesse, que estaria sempre ao meu lado para me ajudar.
            Corri escadas acima, atravessei corredor, e finalmente cheguei aos seus aposentos. Bati freneticamente na porta, sentindo o coração a querer saltar-me do peito.         
            - Entre.
            Inspirei fundo e transpus a porta.
            O meu padrinho estava, como habitualmente, sentado na sua poltrona confortável, a ler qualquer coisa, um dos documentos deixados na sua grande secretária cheia de resmas e resmas de papéis. Os seus olhos astutos cravaram-se nos meus e tive uma vontade enorme de correr até aos seus braços como uma criança choramingas que anseia pelo apoio do pai.
            John ficou muito surpreendido quando me viu. Tomara, ele já não falava com a afilhada há três semanas. Devia achar estranho que agora eu entrasse pelo seu gabinete, a chorar desalmadamente e com ar de quem desmaiaria a qualquer instante.
            - John… - Balbuciei.
            A minha voz, a maneira como eu o chamei, fê-lo aperceber-se que estava a falar comigo e não com Kalissa. Levantou-se rapidamente da poltrona e correu até mim, abraçando-me com força.
            - Oh Kiara…
            Eu deixei que os soluços quase me sufocassem. Pelo menos ele ainda estava do meu lado. Quando ele recuou, para me conseguir fitar directamente nos olhos, vi o terror a mudar-lhe a expressão, tornando-o muito mais velho, cansado e desesperado. Odiei ver aquele ar no meu padrinho.
            - Pensei que nunca mais voltarias a ser tu mesma…
            Gaguejei, limpando as lágrimas e tentando parar de chorar.
            - Desculpe… eu só descobri há cerca de dez minutos o que tinha acontecido… nem consigo acreditar que a Kalissa fez isto…
            - Eu já não acreditava que tu voltasses… passou tanto tempo desde que ela assumiu o controlo… fez coisas tão más…
            As lágrimas soltaram-se novamente dos meus olhos, ultrapassando a barreira de auto-controlo que eu tanto me esforçava por criar.
            - Ela droga-se… e dorme com o Brand… eu não acredito nisto…
            - Tem calma. Agora tu voltaste. Isso é que interessa. Eu ajudo-te em tudo o que precisares, mas tens de te acalmar.
            Fixei o olhar no seu, sentindo que ele me tentava desesperadamente trazer à razão, acalmar-me, fazer-me acreditar que podia recuperar tudo aquilo que Kalissa destruíra. Mas eu não acreditava nisso. O meu mundo tinha desmoronado enquanto eu estava paralisada no poço escuro, presa no meu próprio corpo e sem conseguir retaliar nem ocupar o meu devido lugar.
            - Anda, vem sentar-te aqui. - Disse ele.
            Pegou na minha mão e puxou-me consigo até uma das cadeiras junto à sua secretária. Fez-me sentar lá e acocorou-se à minha frente, limpando-me as lágrimas, que eram logo repostas.
            - Agora conta-me como é que acordaste, por favor.
            - Eu senti-me… a acordar, como se ainda fosse a manhã de 16 de Novembro… mas a dor de cabeça era muito forte e sentia-me cansada e… e a precisar de algo… não sabia o que era, mas foi a dor no corpo todo que me fez acordar e abrir os olhos…
            - A dependência física da droga. - Murmurou John, sumidamente.
            - Pois… e depois apareceu o Brand… eu não fazia ideia de como é que tinha ido parar à cama dele… depois quando me vi ao espelho descobri que estava assim… oh John eu não tenho culpa, eu não sabia que isto tinha acontecido…
            - Sabes que a Kalissa se tem feito passar por ti desde esse dia? Ela fala comigo como se fosses tu… eu quase cheguei a acreditar que ainda estivesses no controlo mas… tu não serias capaz das barbaridades que ela cometeu, jamais te drogarias.
            - Claro! E mesmo a Kalissa nunca tinha chegado a este ponto… além de que o Brand disse que… ela tinha acabado o meu namoro com o Chris…
            Essa ideia fez-me chorar mais ainda enquanto o meu coração se revoltava contra a realidade. Chris não devia querer ver-me à frente… devia odiar-me, não tanto quando eu me odiava naquele momento, mas o suficiente para me afastar para sempre de si. E eu nem queria pensar que ele me pudesse fazer isso. Eu amava-o!
            - John… os meus amigos… eles devem odiar-me neste momento…
            As sobrancelhas de John quase se uniram acima dos seus olhos sensatos de pai preocupado.
            - A Kalissa criou um novo grupo de amigos. Ou melhor… os jogadores da equipa de basebol e as Raparigas de Claque substituíram a Niza, a Sophie, o Ryan, o Peter e o Chris, por assim dizer.
            - Eles são insubstituíveis… - Murmurei, sentindo as lágrimas a queimarem as minhas faces enquanto desciam.
            - Pois, mas a Kalissa não pensa dessa maneira.
            Senti-me tão furiosa nesse momento que me apetecia matar-me, só para poder acabar com a demónia dentro de mim. Talvez fosse essa a minha única escapatória: matando-me, matava também Kalissa, e livrara o mundo da sua presença horrorosa.
            - Kiara? O que é que vais fazer?
            Suspirei e baixei a cabeça, sentindo-me impotente. O que é que eu podia fazer? As minhas amigas não me ouviriam, Chris não acreditaria em mim… nunca mais voltariam a confiar em mim…
            - Não sei. Mas tenho de agir rapidamente, antes que a situação pior ainda mais.
            - Não acho que isso seja possível mas…
            Ele interrompeu-se, ao ver que me magoava com aquelas palavras.
            - Acho que agora devias ir ter com o Chris e explicar-lhe a situação.
            - Não! Eu não posso dizer-lhe o que se passa comigo! Ele vai odiar-me ainda mais quando souber que lhe menti…
            - Mas Kiara, esta situação já passou dos limites! Se lhes contares eles poderão estar ao teu lado, vão apoiar-te e tudo se tornará muito mais fácil. Acredita em mim, o melhor que tens a fazer neste momento é contar-lhes o que se passa contigo.
            Inspirei fundo, tentando perceber se era realmente a melhor atitude a tomar e entendi que não havia alternativa. Chegara a hora de finalmente lhes explicar o que se passava comigo.
            Levantei-me, limpei as lágrimas uma vez mais e tentei mostrar-me confiante, apesar de me sentir arrasada por dentro.
            - Vais contar-lhes? - Perguntou John, preocupado.
            - Vou. Tem razão, já não posso esconder isto mais tempo.
            - Vai correr tudo bem. Depois conta-me como correu.
            - Está bem.
            John abraçou-me uma última vez e depois recuou para a sua poltrona, deixando-me sair dos seus aposentos. Durante todo o caminho, enquanto percorria aqueles corredores sombrios e antigos, preparava-me mentalmente para uma das coisas mais difíceis que já fizera na vida: revelar o meu segredo.
            Era esta a razão pela qual eu nunca tivera amigos antes de entrar para a Blackstone Private School: porque as amizades diminuem a nossa privacidade, os relacionamentos que desenvolvemos tanto nos podem deixar felizes como desesperados, tristes ou assustados, como eu me sentia naquele momento. Porque quando se tem amigos não se pode mentir, não os podemos enganar nem podemos querer o mal deles. E quando Niza, Sophie, Ryan, Peter e Chris soubessem que eu passara todo aquele tempo a mentir-lhes, nunca mais quereriam olhar para a minha cara, nem que eu lhes explicasse que só fizera aquilo pelo bem deles.
            Finalmente, a porta do meu dormitório apareceu ao fundo do corredor e eu corri até lá, sentindo o nervosismo a fazer-me acelerar o sangue nas veias, a dor de cabeça era cada vez mais forte e eu via tudo mais ou menos desfocado. Claro que, aliada à ansiedade, a droga não ajudava a acalmar-me. Muito pelo contrário, ainda me punha pior do que eu devia estar.
            Parei em frente à porta e subitamente senti-me amedrontada. Não estava preparada para ouvir as acusações de Niza e Sophie, não queria que elas me odiassem nem que gritassem comigo e me expulsassem dali. Tudo o que precisava naquele momento era que elas me abraçassem e embalassem nos seus braços e dissessem que ainda eram minhas amigas e que ficaria tudo bem. Era disso que eu precisava. Talvez sentisse tanta necessidade disso por saber que era pouco provável que acontecesse. Elas já me odiavam de mais e odiaram mais ainda quando soubessem que eu lhes mentira. Logo Sophie, que odiava mentiras acima de tudo o resto.
            Mas eu não podia ficar ali parada, a remoer sobre todas as maneiras que elas inventariam para me deitarem ainda mais abaixo. Inspirei fundo, contive as lágrimas e abri a porta, entrando no meu quarto.
            Tal como eu imaginara, Niza estava sentada na sua cama a ler e Sophie em frente do espelho de corpo inteiro, a pentear o seu longo e belo cabelo da cor do chocolate. Quando eu entrei, a conversa foi travada e os seus olhos cravaram-se em mim. Nenhuma de nós disse nada durante os primeiros segundos de reconhecimento, mas depois Niza fechou o livro que estava a ler e levantou-se bruscamente na cama, aproximando-se de Sophie. As expressões de ambas eram equiparáveis às de alguém que visse um fantasma de um familiar há muito falecido. Essa sensação fez as lágrimas quererem soltar-se novamente do meu controlo mas eu cerrei as mãos em punhos para me controlar.
            Depois, o choque deu lugar à irritação. Sophie pousou a escova do cabelo em cima da secretária e cruzou os braços, fitando-me como quem não quer nada ver-me à frente.
            - O que fazes aqui, Kiara?
            A sua voz… tão maldosa, tão insensível, fez-me recuar dois passos, e os meus olhos ficaram novamente marejados de lágrimas. Eu tinha perdido a minha amiga… tinha deixado que Kalissa destruísse a amizade tão forte que me unia a Sophie e Niza, tinha deixado que elas passassem a odiar-me.
            - O que é que queres? - Resmungou Niza.
            A raiva nos seus olhos era ainda mais profunda que nos de Sophie. O meu coração começou a protestar pela dor que elas me estavam a provocar. Eu daria tudo para voltar atrás, para fazer com que elas me perdoassem. Mas havia uma maneira de fazer isso, eu só não sabia se seria suficientemente forte para ir com ela avante.
            - Niza… Sophie… - Foi tudo o que consegui dizer.
            Elas não mudaram nem só um pouquinho, como se não quisessem saber se eu sofria ou não.
            - Vais ficar aqui especada ou vais-te embora de uma vez por todas?
            Cravei o meu olhar suplicante em Niza. Como era possível que ela tivesse mudado tanto durante aquele tempo?! Como era possível que a amizade que nos unia tivesse sido tão brutalmente apagada de um momento para o outro?
            Até era possível, e eu até saberia compreender… se ao menos soubesse tudo o que Kalissa tinha feito com elas. Mas como não sabia, restava-me apenas encarar aquilo como uma prova de fogo, e rezar para que elas acreditassem em mim e no meu segredo.
            - Eu acho que ela não está a gozar connosco. - Disse Niza subitamente.
            Mas a raiva não desapareceu do rosto de Sophie. Os olhos cor de caramelo pareciam faiscar de fúria, fundindo-se com os meus. Então, o meu coração falhou duas batidas e obrigou-me a respirar com mais força. Fechei os olhos por uns segundos, apelando à minha coragem interior, e depois fechei a porta com força, produzindo um baque certeiro. Niza parecia agora mais atarantada e espantada que furiosa comigo. Ela recuou até ficar mais ou menos atrás de Sophie, como se temesse que eu fosse perigosa.
            - Escusas de estar a fugir de mim, Niza! Não te vou comer um bocado! - Vociferei, avançando três passos na sua direcção.
            Sophie colocou-se entre mim e Niza, fitando-me com exaltação.
            - Não te aproximes. Achas que já não fizeste mal suficiente?!
            Parei. Tinha de as fazer acreditar em mim. Chegara a altura de pôr a descoberto todas as mentiras e crueldades de Kalissa.
            - Sophie, sou eu. A Kiara.
            Ela revirou os olhos como se isso fosse muito óbvio e manteve a fúria nos seus olhos faiscantes.
            - Isso não é nenhuma novidade. Se só aqui vieste para nos dizeres isso perdeste o teu tempo. Agora vai embora!
            As lágrimas soltaram-se dos meus olhos, como um rio incontrolável, e Niza espantou-se com a minha reacção. O seu coração mole era mais fácil de domar que o de Sophie. Os seus olhos cristalinos cravaram-se nos meus e eu soube que seria mais fácil convencê-la.
            - Niza…por favor, tens de me ouvir… eu tenho algo para vos contar…
            Apesar de eu conseguir que Niza me ouvisse, de conseguir apelar ao seu bom senso e de ela se derreter como manteiga face às minhas palavras, Sophie era muito mais forte. A sua força de guerreira e a sua teimosia desmedida eram mais difíceis de contornar.
            - Não nos vais dizer nada que queiramos ouvir. O que é que fazes aqui, Kiara? Onde é que estão a Mariah e as tuas outras amiguinhas?
            Mariah? Do que é que ela estava a falar? Eu nunca gostara assim tanto da Mariah. Mas Kalissa…
            - Esperem. Eu não sou amiga da Mariah nem das miúdas do grupo dela, juro! Se me ouvirem eu explico tudo! - Gaguejei.
            Kalissa era capaz de se ter unido definitivamente às Raparigas da Claque só para enervar Niza e Sophie e afastá-las de mim. Até conseguia adivinhar que fora esse mesmo o seu plano. Mas Sophie não cedeu ao meu pedido.
            - Eu não quero falar contigo. Este já não é o teu quarto por isso sai daqui.
            - Não é o meu quarto?!
            - Não! Tu agora dormes com o Brand, ou não te lembras disso? - O sarcasmo presente na sua voz era ainda mais poderoso que as chamas dançantes nos seus olhos. Sophie estava realmente magoada comigo.
            Não. Não estava magoada comigo, estava magoada com Kalissa.
            - Isto está errado. Vocês estão enganadas. Tudo aquilo em que têm acreditado… não é verdade!
            - Nisso tens razão. Acreditámos que eras nossa amiga, e é mentira! Confiar em ti foi o maior erro da minha vida. - Vociferou Niza, que parecia ter recuperado a raiva por mim.
            Aquilo atingiu-me realmente. Uma facada no peito que deixou o meu coração ainda mais destroçado que antes. Os soluços quase me asfixiavam e eu não conseguia falar, não era capaz de lhes explicar o que acontecera. Senti as pernas bambas, precisava de me apoiar nalgum lado para não cair.
            Caminhei até à minha antiga cama e sentei-me lá, escondendo o rosto entre as mãos e apoiando os cotovelos nos joelhos. Nem Niza nem Sophie disseram algo para me obrigar a sair. Eu tive tempo para me acalmar o suficiente, parar de chorar e controlar os batimentos cardíacos.
            - Chamem o Ryan. Por favor. - Murmurei.
            Ouvi Sophie a resmungar qualquer coisa mas não compreendi bem o que seria. Como vi que elas não obedeciam ao meu pedido, elevei o olhar e cravei-o em Sophie.
            - Vai chamar o Ryan, peço-te. Está na hora de vos explicar o que se tem andando a passar.
            Niza e Sophie entreolharam-se por momentos, indecisas entre fazer o que eu lhes pedia e o que a consciência de ambas ordenava, e eu esperei silenciosamente até Sophie revirar os olhos e se encaminhar para a porta.
            - Eu vou. Mas ai de ti que faças mal à Niza. Vais ter de te haver comigo.
            E saiu, fechando a porta com estrondo. Por uns minutos, mantive o olhar fixo no de Niza, que mordia o lábio inferior para controlar os nervos. Não era preciso que ela me dissesse nada, eu sabia o quanto ela estava irritada com toda aquela situação, o quanto queria mandar-me embora. Eu conseguia ler isso no seu olhar exaltado.
            - Perdoa-me Niza. - Sussurrei-lhe.
            Ela manteve-se impassível, mas cerrou as mãos em punhos para se controlar. Pelo menos não desviou o olhar do meu. Ela também era forte, quando queria sê-lo, e naquele momento a sua força estava no auge, ela aguentava bem a pressão que eu exercia sobre ela, sendo capaz de suportar o meu olhar suplicante sem ceder ao meu pedido.
            - O que se passou nestes últimos vinte e um dias… não era eu. Juro. Quem estava a agir por mim era outra pessoa.
            Nesse instante, Niza revirou os olhos e soltou uma interjeição de escárnio. Claro que ela não acreditava em mim. Seria preciso muito para a convencer que eu estava a dizer a verdade. Mas eu lutaria tudo o que pudesse para recuperar a minha melhor amiga.
            - Niza, escuta-me. Esta sou eu, outra vez. A tua melhor amiga. Estou aqui, podes confiar em mim.
            A sua testa franziu-se com a vontade que tinha de me responder mal.
            - Eu nunca mais confiarei em ti, Kiara.
            Eu engoli em seco. Não queria tomar aquilo como um dado certo, pelo menos antes de ela saber a minha história. Depois disso ela podia fazer os juízos que quisesse e seguir o caminho que decidisse seguir, mas só depois de saber toda a verdade.
            Sophie entrou no quarto, com Ryan logo atrás dela. Pareciam ambos chateadíssimos comigo. Ryan fechou a porta e lançou-me um olhar colérico enquanto se aproximava de Sophie e rodeava os ombros dela com o seu braço. E ficaram os três a olhar para mim, enquanto eu arranjava forças para lhes explicar a trapalhada enorme em que me encontrava. Estava a ser muito mais difícil do que eu previra.
            - OK, vocês estão todos com vontade de me esfolar o pescoço mas… por favor, ouçam-me. Isto é muito mais difícil para mim do que para vocês.
            Ryan revirou os olhos com sarcasmo. Ele não acreditava no que eu dissera. O que era feito do meu melhor amigo super preocupado e compreensivo?
            Levantei-me da cama, a sentir as minhas forças a voltarem. Não sabia se era normal sentir isso, mas era assim que tudo se processava dentro de mim. Provavelmente eram os efeitos da droga a actuar.
            - Podem acusar-me do que quiserem, mas primeiro vão ouvir aquilo que tenho para dizer.
            - E se não quisermos ouvir-te? - Perguntou Ryan, os seus olhos atacavam-me como facas bem afiadas.
            Levantei a cabeça, sentindo a minha própria raiva pela situação descendo-me pelos braços, até à ponta dos dedos. Sentia-os a tremer pela exaltação. Depois cravei o meu olhar no de Ryan e a minha voz saiu bem mais determinada que antes.
            - A pessoa com quem têm lidado desde há quase três semanas não sou eu. - Respondi solenemente.
            Sophie fez cara de quem não acreditava nem só um bocadinho nas minhas palavras. Ryan manteve-se calado mas Niza parecia estar a acreditar, ainda que lentamente e com muitas reservas, naquilo que eu dizia.
            - Esta não sou eu. Olhem bem para mim. Acham que a vossa Kiara seria capaz de chegar a este ponto?!
            Aproximei-me deles e puxei a manga da camisola para cima, quase até ao ombro. Depois rodei o braço de vários ângulos, para que eles pudessem ver o padrão de tatuagens azuis que sobressaía debaixo da minha pele fina e esbranquiçada.
            - Tu começaste a drogar-te. É bem-feita que tenhas ficado assim. - Vociferou Ryan, a sua voz fazia-me lembrar adagas aguçadas.
            - A Kiara nunca se drogaria. O que vos estou a tentar dizer é que… não sou eu quem tem estado a comandar o meu corpo durante este tempo.
            Sophie soltou uma gargalhada fria e sem qualquer sentido de humor, mais um elemento para me deitar abaixo, mas eu aguentei firmemente.
            - Só falta dizeres que estavas possuída.
            Sorri, embora não me sentisse minimamente feliz. Sorri apenas por ela estar a chegar lá muito mais depressa do que eu julgava que ela faria. Não era bem isso que se passava, mas a ideia estava certa em vários pontos. Eu estava possuída, sim, podia dizer-se dessa forma.
            - Estás a chegar aonde eu queria, Sophie. - Murmurei.
            Os olhos de Niza arregalaram-se de espanto. Ela acreditava em mim. Mas Ryan e Sophie pareciam ter-se unido com a mesma opinião.
            - Tu, possuída? Chamaste-me aqui para gozares comigo?! - Gritou Ryan, enraivecido.
            - Não! Por favor, escutem-me! Eu tenho um problema. Nunca vos contei sobre ele porque não queria… que se afastassem de mim, como todas as pessoas têm feito na minha vida, afastando-se da "rapariga louca com dupla personalidade". É isso que todas as pessoas têm feito comigo desde que descobri que tinha este problema.
            Bingo. Eu estava a captar a atenção deles. Até Sophie já estava a ficar mais calma, escutando com atenção aquilo que eu dizia. Niza estava completamente rendida ao meu discurso. Apenas Ryan se mostrava reticente em acreditar nas minhas palavras.
            - Que tipo de problema? Dupla personalidade? - Perguntou Niza, incrédula.
            - Sim. Precisamente. Dentro de mim eu tenho uma espécie de… alter-ego, entendem? Chama-se Kalissa. E tem sido ela a comandar-me nestes últimos vinte e um dias.
            Por uns momentos, ninguém disse nada, mas depois Ryan desatou a rir-se, gargalhadas maldosas, e Sophie imitou-o. Só Niza se manteve assustada, ainda a acreditar na verdade que eu lhes mostrava.
            - Ah sim, é isso mesmo! - Gozou Ryan, ainda muito furioso comigo.
            Cerrei as mãos em punhos, as unhas magoavam-me a pele frágil. Aquilo estava a tirar-me do sério. Ele julgava que eu estava a gozar?!
            - Eu estou a falar a sério Ryan… - Praguejei, sentindo a raiva a começar a controlar-me.
            - Eu não acredito em nada do que dizes! Essa é só mais uma das tuas mentiras para nos apanhares! Olha o que estás a fazer à Niza!
            Controlei a minha fúria por mais uns momentos. Niza parecia à beira de um ataque de nervos. As suas mãos tremiam quase tanto quanto as minhas, e os seus olhos pareciam ir saltar-lhes das órbitas. Eu odiava ver a minha melhor amiga assim, mas se fosse preciso para a recuperar, eu falaria até à exaustão.
            - Niza… por favor tens de acreditar em mim…
            Aproximei-me dela e estendi a mão na sua direcção. Sophie ainda pensou em deter-me, eu sei que sim, mas felizmente ficou quieta. Ryan também não disse nada. Mas Niza estava petrificada, não parecia ter forças nem coragem para confiar no que eu lhe dizia.
            - Como é que isso pode ser verdade? - Balbuciou ela.
            - Estou a dizer-te que é. A Kalissa consegue controlar-me, eu fico sem poder sobre o meu corpo. Ela faz-se passar por mim para vos controlar também. E eu não posso fazer nada contra ela.
            - Mas ela disse que era a Kiara… que eras tu… ela disse isso… - Gaguejou Niza.
            - Eu sei. Essa é a maneira dela vos apanhar na sua teia de mentiras maldosas. Não estão a ver o que ela fez?! Afastou-vos de mim, porque sabe que vocês são as pessoas mais importantes, os meus melhores amigos! Ela sabe que se vos afastar e vos virar contra mim me deixará sozinha, indefesa, mais facilmente conseguirá controlar-me.
            Ousei olhar para Ryan e pela primeira vez ele parecia estar a acreditar no que eu dizia. Sophie também já estava a ver as coisas pelo meu panorama, felizmente. Os olhos verdes de Niza encheram-se de lágrimas e ela soluçou tristemente.
            - Niza… por favor, tu confias em mim, és a minha melhor amiga… ninguém me conhece tão bem quanto tu…
            Ela desviou o olhar do meu e vi as lágrimas a rolarem pelas suas faces bonitas. Apeteceu-me abraçá-la e consolá-la tanto quanto queria que ela fizesse a mim. Mas não sabia se ao fazê-lo a enfureceria mais ainda.
            - Tu passaste-te para o lado do inimigo, Kiara… acabaste com o Chris, deixaste-o num estado lastimável… e ainda começaste a andar com o Brand… agora fazes parte do grupo da Mariah…
            - Não! Sophie, essa não era eu. Essa é a Kalissa. Ela é que é assim, não eu. Eu sou a rapariga que vocês conhecem, sou a vossa Kiara, a vossa amiga. Por favor acreditem em mim… sem vocês, com quem poderei contar?!
            Sophie e Ryan entreolharam-se demoradamente e depois voltaram a fixar-me com uma intensidade mais amena e menos violenta. A raiva deles estava a passar, lentamente.
            - Não podes esperar que esqueçamos tudo o que a Kalissa fez nestas três semanas que passaram. Ela fez tudo o que tu não podias fazer connosco. Magoou a Niza mais do que alguém alguma vez tinha feito.
            - Eu sei. Ela tem a capacidade de superar as nossas expectativas, e sempre pelo lado mau. - Murmurei.
            Niza cravou o olhar no meu e subitamente parou de chorar.
            - Se és mesmo tu… se voltaste mesmo a ser a nossa Kiara… vais ter de nos provar.
            Recuei, surpreendida com as suas palavras. Provar-lhes?! E como faria isso?
            - Como é que queres que te prove que sou eu mesma?! - Gaguejei.
            - Arranja maneira. Queremos ter a certeza que não é só mais uma mentira. - Disse Sophie, de olhos semicerrados.
            Eu não sabia o que fazer. Não tinha a mais pequena ideia de como fazer isso. Mas de repente, uma imagem formou-se na minha cabeça, algo que me ajudaria mais do que eu podia imaginar. Sim. Era capaz de resultar.
            - O meu padrinho pode ajudar-me. Ele sabe do meu segredo, sempre esteve a par dele. Ele pode confirmar que eu estou a dizer a verdade.
            Claro que Niza, Sophie e Ryan não esperavam aquilo. Ficaram a olhar para mim, espantados, mas pareciam acreditar no que eu dissera. Senti-me bem por os estar a recuperar.
            - Querem a prova, ou não?
            Ryan assentiu com a cabeça e eu suspirei, virando-me para a porta.
            - Venham comigo.
            Sabia que eles me seguiriam. Abri a porta e passei para o corredor, seguida pelos meus amigos ainda bastante receosos em acreditar no que eu lhes dizia.
            Seguimos caminho até aos aposentos do meu padrinho, onde eu estivera antes de encarar Niza e os outros. Bati à porta calmamente e ouvi a voz de John a dar-me ordem para entrar. Foi isso que fiz, com Niza, Sophie e Ryan a seguir-me silenciosamente.
            Avancei até ficar em frente à secretária do meu padrinho, que me fitou com espanto.
            - Kiara? Passa-se alguma coisa?
            Esperei que os meus amigos se colocassem ao meu lado e só nessa altura falei.
            - Passa. Eles não acreditam que eu tenho a Kalissa dentro de mim. Estão determinados a pensar que tudo o que eu disse seja uma mentira. Por isso preciso que confirme a história para eles acreditarem.
            John fitou os meus colegas com incredulidade e depois recostou-se na poltrona, com as sobrancelhas franzidas de preocupação.
            - Bem… ela está a dizer a verdade. Podem confiar.
            - Ela esteve mesmo possuída por essa tal Kalissa?! - Perguntou Ryan, ainda sem querer acreditar.
            Era como se ele e a namorada partilhassem a teimosia indestrutível.
            - Sim. Desde o início, quando a Kiara entrou cá para o colégio, que tenho acompanhado as mudanças de personalidade entre ela e a Kalissa. E durante estes últimos dias, elas estiveram trocadas. Foi a Kalissa a controlar o corpo da Kiara. Foi ela a responsável por todas as más acções.
            - Mas… só o senhor é que sabia disto?! - Sophie estava assustada com as revelações, agora que se apercebera que era mesmo verdade.
            - Sim. Mas acho que neste momento temos de estar todos alerta, para o caso da Kalissa ganhar poder outra vez. De certeza que isso vai voltar a acontecer.
            - Eu também tenho a certeza absoluta disso. Ela deve estar furiosa neste momento. Ela destrói a minha vida e eu destruo a dela. Um jogo do gato e do rato que nenhuma de nós consegue vencer. - Respondi.
            Niza cravou o intenso olhar esmeralda no meu e tive a certeza que ela acreditava no que eu dizia. Finalmente, ela estava a voltar para mim. Esbocei um sorriso incentivador e ele retratou-se no rosto dela.
            - Sophie, Ryan… ela está a dizer a verdade. A Kiara voltou.
            E pela primeira vez nesse dia, senti que as coisas iam melhorar. Niza correu para mim, lançou os braços à volta do meu pescoço e abraçou-me fortemente. Eu dei largas à alegria que me assolou naquele momento e abracei-a também.
            - Oh Niza… lamento tanto o que ela te fez…
            Niza chorava sem parar, mas eu sabia que ela estava feliz por eu ter voltado. Quando finalmente se separou de mim, pude observar Sophie e Ryan. Eles estavam perplexos a olhar para mim, e não consegui distinguir se já me tinham perdoado ou não.
            - Kiara… - O murmúrio escapou por entre os lábios semicerrados de Sophie, como um suspiro desalentado.
            - Sim, sou eu. Voltei. E não vou deixar que ela se ponha entre nós nunca mais. - Sorri.
            Então os braços de Sophie substituíram os de Niza enquanto ela também me apertava com força.
            - Nunca. Mais. Nos. Mintas. - Disse ela, com tanta convicção que eu soube logo que jamais o voltaria a fazer.
            Assim que Sophie se afastou, Ryan tomou-me nos seus braços e também me apertou contra si.
            - Está descansado Ryan. Eu nunca mais vos vou esconder o que quer que seja, mesmo que possa ser mau. - Sussurrei junto ao seu ouvido.
            - Ainda bem que aprendeste a lição.
            E depois os meus três melhores amigos ficaram à minha frente, fitando-me intensamente. Naquele instante, eu senti-me bem, completa. Senti que Kalissa não se conseguiria pôr entre nós. Olhei para o meu padrinho, que se encontrava por detrás de Niza, e sorri-lhe.
            - Obrigada John.
            Ele piscou-me o olho, parecendo verdadeiramente feliz por ver que os meus amigos me tinham perdoado.
            O terror, o pânico que tinham acompanhado o meu despertar nessa manhã estavam a esvair-se de mim. A sensação de melhoria substituía-os. E por muito que as coisas pudessem piorar quando eu saísse daquela sala, sabia que eles estariam do meu lado. Os meus quatro protectores.
            Estendi a mão para o centro do círculo formado pelos meus amigos e pelo meu padrinho e fechei os olhos, deixando que aquela sensação de felicidade se expandisse até cada partícula do meu ser, aquecendo-me, fazendo-me sentir mais calma.
            - Eu vou conseguir controlar a Kalissa. Mesmo que isso demore muito tempo, mas eu não vou desistir.
            Senti uma mão sobre a minha e soube que era de Niza.
            - E nós vamos ajudar-te.
            - Sim, ela não vai conseguir passar por nós todos. - Disse Ryan, com muita convicção.
            As mãos de Sophie e John juntaram-se às dos meus outros dois amigos e eu abri finalmente os olhos, sorrindo para todos eles como não pensara que conseguisse sorrir nesse dia.
            - Sim. Vamos conseguir derrotá-la.

Sem comentários:

Enviar um comentário